O artista e pesquisador Diogo Nógue enviou ao Instituto Inhotim, em Minas Gerais, uma carta aberta solicitando a interrupção ou revisão da exibição de obras do fotógrafo Miguel Rio Branco. As produções contestadas - a série Maciel (1979) e o filme Nada levarei quando morrer aqueles que me devem cobrarei no inferno (1985) - retratam comunidades negras do Pelourinho, em Salvador, em contextos de vulnerabilidade, violência e prostituição.
Segundo Nógue, as imagens são exibidas sem mediação crítica ou contextualização histórica, reforçando estereótipos racistas e promovendo uma “leitura que animaliza e objetifica” as pessoas retratadas. Ele também afirma que a edição do vídeo, combinada à sonoplastia, transforma as cenas em algo grotesco e, em certos trechos, erotiza e zomba de mulheres nuas.
O Inhotim respondeu que planeja atualizar os textos e abordagens curatoriais, buscando alinhamento com as discussões contemporâneas.
Este pedido de interrupção ou revisão expõe uma tendência preocupante: a crescente disposição de atender solicitações de retirada ou alteração de obras de arte com base no argumento do “desconforto”. É preciso ser claro - isso é censura. Muda-se o nome, suaviza-se o termo, mas o efeito é o mesmo: restringir o que pode ou não ser visto segundo a sensibilidade de alguns.
Enquanto o pedido de interrupção configura censura, o pedido de “revisão” é ainda mais esdrúxulo, pois veicula a pretensão de ditar o discurso alheio. Ora, quem quiser que faça arte — ou o que bem entender - com sua própria visão de mundo e a exponha ao público. O que não se pode admitir é que alguém, sob qualquer pretexto, queira regulamentar ou determinar a livre expressão de outrem.
Esse fenômeno tem ocorrido com frequência no identitarismo. Nele, por exemplo, negros e até brancos ativistas tentam determinar qual religião, ideologia ou até parceiro sexual os negros podem ter. Trata-se de uma postura equivalente à dos antigos senhores de engenho, apenas travestida de discurso progressista. O mesmo problema ocorre em outras minorias, que, além dos problemas de sempre, agora ainda enfrentam censura e hostilização por parte daqueles que dizem defendê-las.
Retornando ao tema da arte, devemos lembrar que, por definição, ela não existe para garantir conforto. Pelo contrário, muitas das obras mais importantes da história perturbaram, confrontaram e provocaram reações fortes. Reduzir a legitimidade de uma obra ao fato de não incomodar é esvaziar o papel transformador da criação artística. A lógica do “me causa desconforto, logo deve ser retirado” inverte o sentido da experiência estética: em vez de ampliar horizontes, a arte passa a ser filtrada para não ferir susceptibilidades.
Outro ponto grave é que o alvo do incômodo não é a realidade em si, mas o seu retrato. Se a violência, a pobreza e a marginalização retratadas nas obras são desconfortáveis, é porque tais realidades o são. Censurar a representação não faz desaparecer os problemas; apenas os empurra para a invisibilidade.
A pobreza e a prostituição, a violência e a falta de acesso à educação e ao trabalho não são enfrentados; basta não revelar tais fenômenos. Nesse passo, surgem os “agiotas raciais” - expressão cunhada por Fernando Senzala - que vivem do problema e parecem preferir que ele nunca acabe, fenômeno já apontado por Thomas Sowell.
Não se pode culpar a janela pela paisagem, nem quem expõe a realidade como se fosse o responsável por ela. Da mesma forma, não se pode dizer se o outro pode falar ou o que deve falar. O que o direito garante é a sua fala - não a gestão da fala alheia.
O mundo parece que acabou mesmo: artistas querendo censurar artistas, jornalistas contra a liberdade de expressão e juristas que não defendem o devido processo legal para todos.
Também preocupa a noção, cada vez mais difundida, de que sentir-se ofendido ou incomodado equivale a ter sofrido um ato de violência real. Essa equiparação distorce conceitos e transforma subjetividades em critérios objetivos para restringir o acesso do público à arte. Na prática, basta que uma pessoa declare desconforto para que uma obra seja condenada.
Esse fenômeno, infelizmente, tem alcançado até o Direito. O que define um crime é a sua descrição legal - a tipicidade - que é algo objetivo. Porém, hoje há quem defenda que, se alguém “se sentiu ofendido”, então estaria diante de um crime. Isso traz uma subjetividade não prevista em lei e gera insegurança jurídica, o que se torna ainda mais grave diante de uma sociedade na qual as pessoas estão cada dia mais fragilizadas e incapazes de enfrentar a realidade.
A missão das instituições culturais é expor a arte com toda a dor e delícia que ela proporciona. Logo, deveriam resistir a pressões que ameacem a liberdade artística. Quando cedem a demandas desse tipo, reforçam a ideia de que a função da arte é agradar, e não desafiar. A história mostra que a censura, venha de onde vier, empobrece o debate, infantiliza o público e corrói a função social da arte: provocar reflexão, questionamento e, sim, às vezes, o desconforto.
Os novos tiranos, travestidos de defensores de causas nobres, agem como os tiranos de sempre: com censura, mordaça e cerceamento das liberdades civis. A arte, assim como o humor, serve para expor a realidade e, quem sabe, levar as pessoas a querer transformá-la.
A cada movimento das novas tiranias, precisamos agir para que as liberdades civis não sejam caçadas e cassadas.