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O golpe da maquininha e a responsabilidade dos bancos

Análise do golpe da maquininha, destacando a responsabilidade objetiva dos bancos e a proteção do consumidor como direito fundamental na era digital.

17/10/2025

1. Introdução

O fenômeno das fraudes eletrônicas, em especial o denominado golpe da maquininha, tornou-se um dos maiores desafios contemporâneos à efetividade do direito do consumidor. Essa modalidade de fraude, que se vale de dispositivos eletrônicos adulterados ou de manipulação dolosa de transações, expõe a vulnerabilidade do consumidor e coloca em evidência a responsabilidade das instituições financeiras e dos fornecedores de serviços de pagamento.

A Constituição da República de 1988 elevou a defesa do consumidor ao patamar de direito fundamental (art. 5.º, XXXII), além de erigi-la como princípio da ordem econômica (art. 170, V). A partir dessa matriz constitucional, o CDC (lei 8.078/1990) foi concebido como microssistema protetivo de ordem pública e interesse social, voltado a assegurar equilíbrio e justiça material nas relações contratuais marcadas pela desigualdade estrutural.

Nesse contexto, a análise do golpe da maquininha exige uma abordagem que articule direito constitucional, direito civil e direito do consumidor, considerando não apenas a literalidade normativa, mas também a evolução doutrinária e jurisprudencial. O estudo dos precedentes demonstra que a jurisprudência majoritária reconhece a responsabilidade objetiva das instituições financeiras, ao afirmar que tais fraudes configuram fortuito interno, inseparável do risco da atividade bancária.

Do ponto de vista doutrinário, a reflexão de autores como Cláudia Lima Marques, José Fernando Simão e Cristiano Chaves de Farias evidencia que a tutela do consumidor deve ser compreendida como expressão da dignidade da pessoa humana. A vulnerabilidade do consumidor - técnica, econômica e informacional - constitui o núcleo que justifica a intervenção do Estado e a imposição de deveres de segurança e transparência ao fornecedor.

O presente artigo tem por objetivo examinar a responsabilidade civil decorrente do golpe da maquininha, à luz do CDC e da Constituição de 1988, bem como analisar os principais precedentes jurisprudenciais e a evolução doutrinária sobre o tema. Busca-se demonstrar que a adequada aplicação da responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco do empreendimento e na noção de fortuito interno, é condição indispensável para garantir a confiança nas relações de consumo e a efetividade da tutela constitucional do consumidor.

2. Responsabilidade civil nas fraudes e eletrônicas em meios de pagamento

2.1. Incidência do CDC e a responsabilidade objetiva

A análise das fraudes eletrônicas em meios de pagamento, especialmente o chamado “golpe da maquininha”, exige partir do reconhecimento de que as instituições financeiras e os fornecedores de tecnologia de pagamento integram a cadeia de consumo. A eles aplica-se, de modo pleno, o CDC, conforme a jurisprudência consolidada do STJ, que editou a súmula 297: “O CDC é aplicável às instituições financeiras”.

Não se trata de simples opção hermenêutica, mas de determinação constitucional, decorrente do art. 5.º, XXXII, da Constituição de 1988, que impõe ao Estado a promoção da defesa do consumidor, e do art. 170, V, que insere a proteção do consumidor como princípio da ordem econômica. A aplicação do CDC, portanto, transcende o âmbito legislativo ordinário e projeta-se como exigência de eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas.

O art. 14 do CDC estabelece de forma categórica a responsabilidade objetiva dos fornecedores de serviços: basta a demonstração do defeito na prestação e do dano para que surja o dever de indenizar, independentemente de culpa. Essa regra traduz a consagração normativa da teoria do risco da atividade, que desloca para o fornecedor o dever de suportar as consequências negativas de sua atuação no mercado de consumo.

A doutrina tem enfatizado que as fraudes bancárias e financeiras se enquadram, de modo inequívoco, na cláusula do art. 14. José Fernando Simão afirma que, “na hipótese de fraudes, a instituição financeira não pode eximir-se da responsabilidade sob o fundamento da culpa exclusiva da vítima”1. Nessa mesma direção, Cláudia Lima Marques reconhece que “as fraudes em transações eletrônicas se inserem no contexto das relações de consumo e, portanto, o consumidor deve estar protegido contra práticas lesivas, sendo tarefa das instituições financeiras garantir a segurança nas operações”.2

De fato, a imputação de responsabilidade ao consumidor, em hipóteses em que a fraude resulta da insuficiência dos mecanismos de segurança ou do controle dos fornecedores, não se compatibiliza com a principiologia do direito consumerista. A vulnerabilidade do consumidor, seja técnica, informacional ou jurídica, deve ser levada em conta, pois constitui a razão de ser do microssistema protetivo.

A jurisprudência tem reiterado este entendimento. No REsp 1.652.757, a 4ª turma do STJ, sob relatoria da ministra Maria Isabel Gallotti, decidiu que “as instituições financeiras têm responsabilidade objetiva em casos de fraudes em operações financeiras, relacionadas à segurança das informações dos consumidores, considerando a tese do fortuito interno”3. A ratio decidendi repousa justamente na constatação de que a fraude constitui risco inerente à atividade, não podendo ser transferido ao consumidor.

Desse modo, a aplicação do CDC às fraudes perpetradas por meio de maquininhas adulteradas ou por aproximação não deixa margem a dúvidas: o fornecedor é objetivamente responsável. Tal construção não apenas assegura coerência ao sistema jurídico, mas concretiza o princípio constitucional da proteção ao consumidor, em sua dupla dimensão - como norma de ordem pública e como direito fundamental.

2.2. Teoria do risco do empreendimento e fortuito interno

O fundamento dogmático da responsabilidade objetiva do fornecedor e das instituições financeiras repousa na teoria do risco do empreendimento. Quem se propõe a exercer atividade econômica no mercado, sobretudo em setores que envolvem transações eletrônicas e circulação de crédito, assume não apenas os benefícios da exploração, mas igualmente os riscos que lhe são imanentes. Trata-se da clássica formulação segundo a qual ubi emolumentum, ibi onus - onde está o proveito, aí deve residir o ônus.

O CDC, ao disciplinar a responsabilidade objetiva no art. 14, consagra expressamente essa concepção. O defeito do serviço não se restringe ao mau funcionamento ou à ineficiência técnica, mas abrange a ausência de segurança que o consumidor pode legitimamente esperar. As falhas na prevenção de fraudes, como o “golpe da maquininha”, enquadram-se, por conseguinte, na categoria de defeito, atraindo a responsabilidade do fornecedor.

É nesse contexto que emerge a noção de fortuito interno. Enquanto o fortuito externo, absolutamente estranho à atividade empresarial, pode romper o nexo causal, o fortuito interno integra o risco do empreendimento e, por isso, não exclui a responsabilidade. As fraudes praticadas por terceiros, no âmbito de operações financeiras, constituem precisamente fortuito interno, por serem previsíveis e evitáveis mediante a adoção de mecanismos eficazes de segurança.

O STJ sedimentou essa compreensão na súmula 479, ao dispor que “as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”. Essa orientação representa o ápice da evolução jurisprudencial no enfrentamento das fraudes bancárias, estabelecendo como dever jurídico dos bancos a criação de sistemas de detecção e bloqueio de transações atípicas.

A doutrina contemporânea enfatiza que a responsabilidade civil não pode ser afastada sob a alegação de imprevisibilidade. Como observam Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto, “quem usufrui, habitualmente, dos bônus de determinada atividade deve responder pelos riscos que ela causar, ainda que sem culpa”4. Esse enunciado traduz, em linguagem sintética, o cerne da teoria do risco da atividade, que se conecta diretamente com a proteção do consumidor nas transações eletrônicas.

A jurisprudência estadual também reforça essa diretriz. O TJ/ES, por exemplo, ao analisar o chamado “golpe do motoboy”, entendeu tratar-se de fortuito interno, reconhecendo a responsabilidade da instituição financeira pela falha em seu sistema de segurança5. No mesmo sentido, o TJ/SP decidiu que fraudes ocorridas por meio de maquininhas adulteradas constituem risco da atividade bancária e, portanto, ensejam responsabilidade objetiva.6

Assim, é possível afirmar que a doutrina e a jurisprudência caminham em uníssono: a teoria do risco do empreendimento, em conjunto com a categoria do fortuito interno, constitui a pedra angular da responsabilização das instituições financeiras e dos fornecedores de serviços de pagamento diante do golpe da maquininha. Longe de se tratar de mera opção interpretativa, essa solução decorre da própria lógica do sistema protetivo instituído pela Constituição e pelo CDC.

Leia o artigo na íntegra.

_______

1 SIMÃO, José Fernando. Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2020. p. 120.

2 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 12. ed. São Paulo: Forense, 2022. p. 255.

3 STJ. REsp 1.652.757, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, j. 18 dez. 2018, publ. 11 fev. 2019.

4 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: JusPodivm, 2022. p. 1018-1019.

5 TJES. Apelação Cível n. 0029765-81.2019.8.08.0024. Rel. Des. Walace Pandolpho Kiffer. 4.ª Câmara Cível. Publicado em 22 ago. 2022.

6 TJSP. Apelação Cível n. 1123003-68.2020.8.26.0100. Rel. Des. Mauro Conti Machado. 16.ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 17 fev. 2022.

Paulo Vitor Faria da Encarnação
Mestre em Direito Processual. UFES. paulo@santosfaria.com.br. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.

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