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Análise da boa-fé do consumidor e o risco de subversão da lei do superendividamento

A boa-fé do consumidor, em ações de superendividamento, deve ser comprovada diante de indícios de má-fé, preservando a finalidade da lei 14.181/21.

19/8/2025

Dever de cooperação e demonstração de boa-fé pelo consumidor, quando presentes indícios de má-fé na aquisição das dívidas que integram a ação de repactuação de débitos por superendividamento

Passados quatro anos da entrada em vigor da lei 14.181/21 (lei do superendividamento), que promoveu alterações no CDC, com o objetivo de disciplinar e prevenir o superendividamento, o Judiciário tem assistido a uma multiplicação de demandas voltadas à repactuação global de dívidas de consumo.

Contudo, apesar de um grande avanço em questões importantes relacionadas à interpretação desta lei, há um ponto relevante, porém ainda pouco discutido, ou não analisado com a profundidade necessária, e que, dada a natureza desta lei e a sua finalidade precípua - tratar e prevenir o superendividamento - se mostra de extrema relevância: a responsabilidade pela demonstração da boa-fé, indicada no §1º do art. 54-A do CDC1, quando surgem indícios de má-fé na expansão de passivo do consumidor.

Sobre o assunto, cabe a ressalva de que, se a verificação desse requisito - a boa-fé - não for realizada com a devida atenção e rigor, a lei do superendividamento poderá ter efeito diverso e oposto ao pretendido, legitimando a assunção temerária de riscos financeiros conscientemente assumidos, e a obtenção de dívidas marcadas pelo abuso da própria condição de vulnerabilidade, estimulando o superendividamento doloso, isto é, deliberado.

No contexto em análise, tem-se que, como dito na “Cartilha Sobre o Tratamento Do Superendividamento do Consumidor”2, produzida pelo CNJ, “a observância à boa-fé pressupõe a consideração acerca dos interesses legítimos que levaram cada uma das partes a contratar”.

Neste sentido, exemplificam-se algumas situações que podem indicar a ausência de boa-fé do consumidor na aquisição das dívidas que integram o objeto do seu pedido de repactuação de débito e preservação do mínimo existencial:

Diante de situações como esta, o que aqui se defende, como forma de preservar o próprio sentido e finalidade da lei de superendividamento, é que a boa-fé do consumidor, em regra presumida, deve agora ser por ele comprovada.

Neste sentido, com acerto indiscutível, observe-se a decisão do TJ/MS.

[...] Ausente a probabilidade do direito invocado e o perigo de dano, tendo em vista que, em juízo de cognição sumária, a boa-fé do consumidor, requisito indispensável para a repactuação da dívida (art. 54-A, § 3º, CDC), é questionável, pois contratou empréstimos bancários (outubro de 2023 - f. 32 dos autos originários) poucos meses antes do ajuizamento da demanda (1/2/2024), quando já possuía conhecimento que teria dificuldades para honrar com o pagamento das parcelas em razão da existência de inúmeros empréstimos firmados anteriormente. [...]3 Grifos nossos.

A concepção proposta visa conferir tratamento distinto aos superendividados ativos4 - que adquirem dívidas de maneira desarrazoada, imprudente, irresponsável, sem reflexão acerca da possibilidade ou não de adimplir as dívidas contraídas, ou cientes de tal condição - e passivos5superendividamento decorrente de fatores ocorridos sem que o consumidor tenha, deliberadamente, contribuído, salvaguardando o superendividamento, a exemplo dos “acidentes da vida” (perda de emprego, redução de renda, morte ou doença na família, separação, divórcio, nascimento de filhos etc.)6.

Nessa perspectiva, também se afasta a imposição aos fornecedores de obrigação praticamente impossível: provar a má-fé do consumidor.  Acerca desta dificuldade, o advogado Izaias Bezerra Neto assim observou:

[...] De se notar que um conceito amplo pode permitir que qualquer situação, que não demonstre má-fé à primeira vista, pode ser albergada pela legislação, já que nesse quadrante de identificação da intenção ou não de burlar, as únicas exclusões a que a lei faz menção são as dívidas que tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, que sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor. Note-se que o ônus de comprovar a má-fé recai inteiramente nos fornecedores de serviços. E a comprovação de tais intenções acaba por ter um grau alto de dificuldade, já que para identificar posturas mal intencionadas o grau de investigação teria que atingir patamar incomum, distante de nossa realidade7.Grifos nossos.

A tese ora proposta está alinhada, também, com o dever de cooperação comum às partes envolvidas na relação contratual que originou o débito, e pretende garantir a observância à disposição contida no §3º do art. 54-A do CDC8, introduzido pela lei de superendividamento, assegurando que o consumidor que tenha adquirido dívidas mediante fraude ou má-fé, que sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor, não acesse à proteção advinda da lei em questão.

Reforçando o acima exposto, destaca-se que o reconhecimento da boa-fé como um dos elementos centrais à superação do superendividamento, e que, portanto, deve ser fortemente preservado, foi reconhecido em recente decisão prolatada pelo STJ:

[...] Consoante já anotado por esta 3ª turma em recentíssimo julgado, proferido nos autos do REsp 2.168.199/RS, na linha da lição de Bruno Miragem, a superação do superendividamento encontra suas bases na boa-fé objetiva de ambos os contratantes e nos deveres anexos de cooperação e lealdade, "que se projetam de seus efeitos, impedem o sacrifício do patrimônio ou da pessoa de um dos contratantes" (Comentários ao CDC, em coautoria com Claudia Lima Marques e Antonio Herman V. Benjamin, 7a ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1.831). [...]9Grifos nossos.

Por fim, oportuno mencionar, ainda, que o deferimento indiscriminado das prerrogativas conferidas pela lei de superendividamento em favor de consumidores que agem de má-fé na aquisição das dívidas, se aproveitando da dificuldade dos fornecedores em demonstrar a sua conduta, além de subverter o propósito da norma destinada à prevenção do superendividamento, poderá ter por efeito, também, o aumento do risco na concessão de crédito, aumentando as taxas de juros praticadas no mercado, gerando prejuízos a todo sistema de consumo.

Deste modo, conclama-se os consumidores, fornecedores e, sobretudo, o Poder Judiciário, a uma análise acurada do tema em questão, elevando a boa-fé que deve ser observada pelas partes no contexto da ação de superendividamento à importância que ela detém, o que se alcança quando, identificando-se indícios de má-fé do consumidor na aquisição de dívidas, se impõe a este o dever de demonstrar o contrário, de modo a salvaguardar a intenção da lei e o próprio mercado de consumo.

_________

1 § 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.

2 CNJ – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cartilha sobre o tratamento do superendividamento do consumidor. Brasília, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/cartilha-superendividamento.pdf. Acesso em: 14 ago. 2025.

3 (TJ-MS - Agravo de Instrumento: 1403325-51.2024.8 .12.0000 Sidrolândia, Relator.: Des. Luiz Tadeu Barbosa Silva, Data de Julgamento: 14/03/2024, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 18/03/2024)

4 Revista Jurídica Cesumar. Janeiro/abril 2019. V. 19, n. 1.

5 Revista Jurídica Cesumar. Janeiro/abril 2019. V. 19, n. 1.

6 CNJ – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cartilha sobre o tratamento do superendividamento do consumidor. Brasília, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/cartilha-superendividamento.pdf. Acesso em: 14 ago. 2025.

7 Estudos sobre direito, cidadania e valores/coord. por Fábio da Silva Veiga, Mário Simões Barata, Isabel Cristina Ferreira Neves Baltazar, 2024, págs. 200-209

8 [...] § 3º O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.’ [...]

9 STJ. Recurso Especial nº 2191259 - RS (2025/0001365-2). Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma. Data do Julgamento: 20/3/2025.

Carlos Fernandes C. F. de Andrade
Especialista em Direito do Consumidor e sócio de Urbano Vitalino Advogados.

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