A recuperação judicial de produtores rurais tem chamado atenção nos veículos especializados. No segundo trimestre, os pedidos no setor agro cresceram 60%, totalizando 388 empresas, um movimento que tem gerado preocupação no mercado1.
A tendência é que esse crescimento continue, especialmente entre os segmentos mais afetados pelo aumento das tarifas impostas pelos Estados Unidos sobre produtos brasileiros, segundo especialistas2.
Diante desse cenário de crise, do crescimento dos pedidos e dos questionamentos sobre o uso adequado da ferramenta, é mais do que necessário destacar que a recuperação judicial permanece como um instrumento essencial para preservar a atividade empresarial, proteger empregos e credores, e assegurar a continuidade das empresas em momentos de dificuldade financeira (art. 47 da lei 11.101/2005).
No contexto do agronegócio, sobretudo em um período de instabilidade, esse mecanismo oferece ao produtor rural a oportunidade de reorganizar suas finanças, garantir a continuidade da exploração econômica e assegurar maior segurança aos credores. Contudo, um aspecto frequentemente negligenciado pode comprometer a efetividade do instituto: a escolha do enquadramento jurídico do produtor rural no momento de seu registro empresarial.
Na prática, muitos produtores que exercem a atividade como pessoas físicas - cumprindo todas as exigências legais para o pedido de recuperação judicial - optam por transformar sua atividade em sociedade limitada, em vez de manterem-se como empresários individuais.
À primeira vista, essa mudança parece apenas uma formalidade burocrática. Porém, seus efeitos jurídicos e econômicos são significativos, impactando diretamente a viabilidade do plano de recuperação.
Historicamente, a recuperação judicial do produtor rural enfrentou desafios interpretativos ligados à formalização e à comprovação da atividade empresarial. A lei 11.101/2005 estabeleceu critérios claros de legitimidade para o pedido de recuperação judicial, incluindo: (i.) a condição de sociedade empresária ou empresário individual, (ii.) o exercício regular da atividade econômica por pelo menos dois anos, (iii.) a ausência de recuperação anterior recente e a idoneidade do sócio controlador ou administradores.
Para o produtor rural, o Código Civil (art. 971) exigia seu registro na Junta Comercial, e a lei permitia que o biênio fosse comprovado por outros meios, como a declaração do Imposto de Renda ou escrituração contábil, o que gerou debate sobre a natureza declaratória ou constitutiva desse registro.
A jurisprudência consolidada pelo STJ no Tema Repetitivo 1.145 resolveu a controvérsia: o registro é formal e declaratório, e o biênio de exercício regular da atividade pode ser comprovado independentemente da data de inscrição, definindo que a formalização na Junta Comercial não impede o acesso à recuperação judicial, desde que a atividade rural seja exercida de forma empresarial.
O problema central que emerge, e que este artigo examina, surge na prática: muitos produtores rurais que exercem sua atividade majoritariamente como pessoas físicas estruturam-se como sociedades empresárias (geralmente limitadas) e tentam usufruir das prerrogativas processuais e documentais reservadas aos empresários individuais nos arts. 48 e 51 da LREF.
Essa escolha jurídica gera conflitos e três problemas estruturais, relacionados à legitimidade e à forma de comprovação da atividade econômica, que serão detalhados no estudo.
A (in)viabilidade de registro do produtor rural pessoa natural como sociedade empresária para fins de recuperação judicial
O Código Civil define empresário individual como a pessoa natural que exerce profissionalmente atividade econômica organizada, assumindo responsabilidade ilimitada por suas obrigações (arts. 966, 968 e 971). Por sua vez, a sociedade limitada possui personalidade jurídica própria e autonomia patrimonial, limitando a responsabilidade ao capital social integralizado (arts. 984 e 1.052). Essa distinção não é meramente acadêmica: ela repercute diretamente na gestão do risco econômico, na relação com credores e na viabilidade de qualquer medida de reestruturação judicial.
Embora a constituição de sociedade limitada seja estratégica para fins societários, sucessórios e tributários, ela pode gerar um descompasso significativo entre a atividade econômica efetivamente explorada e o sujeito formal do pedido de recuperação judicial.
Em muitos casos, os bens que sustentam a produção permanecem na esfera da pessoa física, enquanto a sociedade limitada recém-criada assume formalmente o passivo, frequentemente sem dispor de ativos suficientes para viabilizar o plano de reestruturação. Essa dicotomia patrimonial cria um risco concreto: a recuperação judicial pode se tornar um instrumento simbólico, sem capacidade real de promover a continuidade da atividade econômica.
A legislação de recuperação judicial (arts. 48 e 51 da lei 11.101/2005) reforça essa tensão ao estabelecer requisitos documentais distintos para pessoas físicas e jurídicas. Produtores rurais que se formalizam como sociedade limitada pouco antes do pedido dificilmente possuem escrituração contábil fiscal ou registros equivalentes, enquanto a prova do exercício da atividade pelo biênio anterior permanece vinculada à pessoa física. Qualquer tentativa de transferir dívidas ou registros da pessoa física para a pessoa jurídica ignora a autonomia legal desta última e compromete a admissibilidade do pedido, configurando um risco jurídico relevante e frequentemente subestimado.
O paradoxo é evidente: a formalização como sociedade limitada, embora legalmente possível, pode fragilizar a recuperação judicial, reduzir a efetividade do instituto e comprometer a segurança jurídica dos credores.
Nesse ponto, a jurisprudência consolidada pelo STJ (Tema Repetitivo 1.145) esclarece que o registro do produtor rural é meramente declaratório e que o biênio de atividade deve ser comprovado independentemente da data de inscrição, reforçando a necessidade de coerência entre a forma jurídica adotada e a realidade material da exploração econômica.
Em síntese, a escolha entre empresário individual e sociedade limitada não é mero detalhe formal. Ela determina o núcleo de responsabilidade, define quais instrumentos jurídicos podem ser utilizados na renegociação de dívidas e influencia diretamente a confiança dos credores na recuperação. Para o produtor rural, essa decisão estratégica é muitas vezes a diferença entre uma recuperação judicial sólida, capaz de preservar a atividade produtiva, e um processo que, apesar de regular nos papéis, se mostra insuficiente para enfrentar a crise econômica real.
___________
1 VALOR ECONÔMICO. Inadimplência dispara no agro e preocupa bancos. Valor Econômico, 18 ago. 2025. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2025/08/18/inadimplencia-dispara-no-agro-e-preocupa-bancos.ghtml. Acesso em: 19 ago. 2025.
2 GLOBO RURAL. Recuperações judiciais do agro cresceram 60% no 2º trimestre. Globo Rural, 2025. Disponível em: https://globorural.globo.com/economia/noticia/2025/08/recuperacoes-judiciais-do-agro-cresceram-60percent-no-2-trimestre.ghtml. Acesso em: 19 ago. 2025.