A transação tributária é uma das inovações mais relevantes do sistema fiscal brasileiro nos últimos anos. Diferente dos antigos programas de parcelamento (Refis), ela introduziu um elemento disruptivo: a análise da CAPAG - Capacidade de Pagamento do contribuinte.
Esse mecanismo classifica devedores em diferentes ratings (A a D), determinando a extensão dos descontos e prazos que podem ser concedidos. Essa novidade trouxe benefícios, mas também gerou debates jurídicos importantes.
Nos tribunais, a questão central é: até onde a PGFN pode ir na regulamentação da CAPAG sem extrapolar os limites da lei?
O fundamento da controvérsia: poder regulamentar vs. inovação legal
Muitos contribuintes questionaram nos tribunais a legalidade do sistema de CAPAG. O argumento principal é que a PGFN, ao editar portarias que detalham cálculos e efeitos da CAPAG, teria extrapolado seu poder regulamentar.
Segundo essa tese, a lei 13.988/20 autorizou a transação tributária, mas não deu "carta branca" para que a PGFN criasse um sistema de classificação que restringe benefícios.
Essa discussão levantou o dilema entre princípio da legalidade estrita em matéria tributária e a flexibilidade da administração pública na gestão da dívida ativa.
A resposta consolidada do Judiciário: a legalidade da CAPAG
Apesar das contestações, a jurisprudência vem se consolidando de forma clara em favor da legalidade do sistema de CAPAG. Os tribunais fundamentam essa posição em três pilares principais:
a) Delegação de competência pela própria lei: A lei 13.988/20, em seu art. 14, parágrafo único, delegou ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional a competência para disciplinar os critérios de aferição do grau de recuperabilidade das dívidas.
Ou seja, ao editar portarias, a PGFN estaria apenas cumprindo a lei, e não inovando.
b) Concretização da capacidade contributiva: Os tribunais entendem que o sistema de CAPAG respeita o princípio da isonomia tributária. Contribuintes com menor capacidade de pagamento (ratings C e D) recebem mais benefícios enquanto que contribuintes com maior capacidade (ratings A e B) têm condições mais restritas.
c) Separação dos poderes e mérito administrativo: Este é o pilar mais forte da argumentação judicial. Os tribunais afirmam que a definição dos critérios de recuperabilidade da dívida é uma questão de política fiscal e gestão da dívida ativa, inserida no campo de conveniência e oportunidade da Administração Pública.
Interferir nesses critérios significaria que o Poder Judiciário estaria se sobrepondo ao mérito do ato administrativo e atuando como um "legislador positivo", o que é vedado pelo princípio da separação dos poderes. O controle judicial se limita à análise da legalidade do ato, e não à sua conveniência ou oportunidade.
Na jurisprudência o tema vem se comportando de maneira a ratificar o posicionamento do FISCO senão, vejamos:
TRANSAÇÃO EXCEPCIONAL. PORTARIA PGFN 18.731/20. REQUISITOS NÃO ATENDIDOS. É prerrogativa da Fazenda Pública decidir os critérios para adesão à transação oferecida. A opção da administração de classificar os créditos em quatro categorias e permitir a transação excepcional apenas para categorias específicas é reflexo de específica política tributária, de modo que não pode o contribuinte modificar tais critérios, conforme seus próprios termos. (TRF-4 - AC: 50520949020214047100, Relator.: LEANDRO PAULSEN, Data de Julgamento: 17/8/2022, 1ª TURMA)
O tribunal foi categórico ao afirmar que "É prerrogativa da Fazenda Pública decidir os critérios para adesão à transação oferecida. A opção da administração de classificar os créditos em quatro categorias e permitir a transação excepcional apenas para categorias específicas é reflexo de específica política tributária, de modo que não pode o contribuinte modificar tais critérios, conforme seus próprios termos."
TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. TRANSAÇÃO. LEI Nº 13 .988/2020. REGULAÇÃO PELA PORTARIA PGFN 6.757/22. ARTS. 37 E 46. VEDAÇÃO DE UTILIZAÇÃO DE CRÉDITOS DECORRENTES DE PREJUÍZO FISCAL E DE BASE DE CÁLCULO NEGATIVA DA CSLL. FIXAÇÃO DE PARÂMETROS DE VALORES. PODER REGULAMENTAR. ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO FISCAL DENTRO DOS LIMITES PERMITIDOS PELA LEI. LEGALIDADE. REMESSA OFICIAL E APELAÇÃO PROVIDAS. (...) 10. A transação, consoante o já citado art. 171, do CTN, é obtida por lei e mediante concessões mútuas. Logo, o contribuinte não tem o direito líquido e certo de impor à administração que aceite a sua proposta de transação, com a finalidade de extinguir os seus débitos, de forma diversa da prevista em lei. Com efeito, não se visualiza qualquer ilegalidade no art. 37, da portaria PGFN 6.757/22, o qual regulamentou a matéria dentro da margem permitida pela lei. (...) 12. Com efeito, diante do contexto normativo exposto, não se pode afirmar, contrariamente ao que defende o impetrante, que a Portaria PGFN nº 6.757/2022 estabeleceu condições não previstas em lei, ao dispor sobre os requisitos para utilização de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL, tampouco ao fixar parâmetros de valores à transação individual, impondo-se reconhecer que os arts. 37 e 46 não inovaram em relação à lei 13 .988/20, porém, tão somente, regulamentaram a matéria no preciso espaço em que isso é permitido ao administrador público, dentro, portanto, do princípio da legalidade. 13. Registre-se que não cabe ao Poder Judiciário interferir em ato privativo da Administração, pautado em razões de conveniência e oportunidade, pelo que nada obsta, nessa linha, a expedição, nos limites da legalidade, observados no caso em foco, de ato administrativo normativo que estabeleça balizas a serem observadas para o processamento da transação tributária. 14. A propósito, em decisão que aqui pode ser invocada mutatis mutandis, decidiu o STF que "[...] Ante a impossibilidade de atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, não cabe a ele, com base no princípio da isonomia, afastar limitação para concessão de benefício fiscal a contribuintes não abrangidos pela legislação pertinente" (RE 631.641/RS, Relator.: min. Ricardo Lewandowski, Data de Julgamento: 18.12 .2012, Segunda Turma, Publicação 13.2.2013). No mesmo sentido: ARE 1 .324.667, ED-AgR, Relator: Min. Rosa Weber, Primeira Turma, DJe 7.2 .2022; ADI 6025, Relator Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 26.6.2020 . 15. Ainda sobre o tema, o STF compreendeu que "Os magistrados e Tribunais, que não dispõem de função legislativa - considerado o princípio da divisão funcional do poder -, não podem conceder, ainda que sob fundamento de isonomia, isenção tributária em favor daqueles a quem o legislador, com apoio em critérios impessoais, racionais e objetivos, não quis contemplar com a vantagem desse benefício de ordem legal. Entendimento diverso, que reconhecesse aos magistrados essa anômala função jurídica, equivaleria, em última análise, a converter o Poder Judiciário em inadmissível legislador positivo, condição institucional que lhe recusa a própria Lei Fundamental do Estado. Em tema de controle de constitucionalidade de atos estatais, o Poder Judiciário só deve atuar como legislador negativo"(AI 360 .461 AgR, Relator (a): min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 6.12.2005, Publicação 28 .3.2008. 16. Outrossim, conforme decidiu o STJ, "É cediço que os atos administrativos, como soem ser as Portarias, gozam de presunção de legitimidade, mercê de, em nome da harmonia dos poderes, vedar-se a sindicância à opção do administrador, muito embora seja lícito na aferição da legalidade observar a correspondência entre a motivação e o resultado do ato, sem contudo, permitir-se ao Judiciário avaliar os critérios de adoção de determinada política econômica governamental, sob pena de ferimento do Princípio da Independência entre os Poderes" (MS nº 11 .862/DF, relatora Ministra Eliana Calmon, relator para acórdão Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 22/4/2009, DJe de 25.5 .2009). 17. Remessa oficial e apelação providas.(TRF-5 - APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA: 0811944-74 .2022.4.05.8000, Relator: LEONARDO RESENDE MARTINS, Data de Julgamento: 29/8/2023, 6ª TURMA)
Nesta decisão, o TRF-5 reforçou que a transação é um ato de voluntariedade e concessões mútuas, não um direito líquido e certo do contribuinte de impor suas condições. O julgado conclui que "não cabe ao Poder Judiciário interferir em ato privativo da Administração, pautado em razões de conveniência e oportunidade", validando a atuação da PGFN ao regulamentar a matéria dentro da margem permitida pela lei.
Implicações estratégicas para advogados e contadores
Com a jurisprudência se firmando a favor da PGFN, a atuação profissional precisa mudar o foco. Em vez de contestar o sistema da CAPAG, a estratégia deve ser mais técnica e preventiva
a) Diagnóstico e simulação da CAPAG: Antes da adesão, é essencial simular o provável rating do contribuinte. Isso permite antecipar cenários e alinhar expectativas.
b) Gestão de expectativas do cliente
- Ratings C e D - maiores descontos (até 70%) e prazos longos (até 120 meses).
- Ratings A e B - benefícios limitados, geralmente apenas parcelamento.
c) Foco na precisão dos dados: Muitos erros na classificação vêm de informações fiscais ou contábeis desatualizadas. A estratégia deve ser revisar balanços, declarações e dados fornecidos à PGFN.
d) Prioridade à via administrativa: A contestação judicial da CAPAG tem baixa probabilidade de êxito. O melhor caminho é solicitar revisão administrativa com base em erros objetivos e documentais.
Conclusão
A análise da CAPAG pelos tribunais mostra um cenário claro: a PGFN tem respaldo legal para aplicar critérios de recuperabilidade, e o Judiciário não intervém no mérito administrativo.
Para empresários, isso significa que os descontos não são automáticos: dependem da situação financeira demonstrada. Para advogados e contadores, o desafio é atuar de forma estratégica, com precisão de dados, gestão de expectativas e foco na via administrativa.
Perguntas frequentes (FAQ)
- O que é CAPAG na transação tributária?
É o índice de capacidade de pagamento do contribuinte, usado para definir descontos e prazos.
- O contribuinte pode questionar o rating na Justiça?
Pode, mas os tribunais têm validado a legalidade da CAPAG, limitando o espaço para contestações.
- Como melhorar a classificação de CAPAG?
Revisando dados contábeis e fiscais, corrigindo inconsistências e apresentando documentos atualizados.
- O que acontece se a classificação for equivocada?
O contribuinte pode pedir revisão administrativa com base em erros factuais.
- Advogados ainda devem litigar contra a CAPAG?
A estratégia judicial é pouco eficaz. O foco deve ser em atuação preventiva e técnica.