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Decreto 11.150/22: ADPF 1006, mínimo existencial e abuso do Executivo

O ato viola a Constituição formal (abuso de poder) e materialmente (dignidade humana), exigindo o controle judicial para afastar sua aplicação e preservar o mínimo existencial.

25/8/2025

A promulgação da lei 14.181/21, conhecida como lei do superendividamento, representou um marco civilizatório na proteção do consumidor brasileiro, buscando resgatar a dignidade de pessoas impossibilitadas de arcar com suas dívidas sem comprometer o necessário para uma existência minimamente digna. Contudo, a edição do decreto presidencial 11.150/22, a pretexto de regulamentar a referida lei, gerou um profundo debate jurídico acerca de sua compatibilidade com a ordem constitucional.

Este artigo sustenta a tese de que o decreto 11.150/22 é um ato normativo flagrantemente inconstitucional. A análise será desenvolvida em três eixos principais: (i) a extrapolação dos limites do poder regulamentar do Executivo, configurando vício formal; (ii) a violação de preceitos fundamentais, como a dignidade humana e a proteção ao consumidor, caracterizando vício material; e (iii) a imperatividade do controle de constitucionalidade, notadamente na via difusa, como mecanismo de salvaguarda da Constituição.

O poder regulamentar e seus limites constitucionais

O poder regulamentar, previsto no art. 84, IV, da Constituição Federal, autoriza o chefe do Poder Executivo a expedir decretos e regulamentos para a "fiel execução da lei". A doutrina e a jurisprudência do STF são pacíficas em assentar que se trata de um poder subordinado, cujos limites são traçados pela lei regulamentada.

Um decreto regulamentar não pode inovar na ordem jurídica, ou seja, não pode criar, extinguir ou modificar direitos e obrigações. Sua função é meramente instrumental: detalhar os aspectos técnicos e procedimentais para que a vontade do legislador, expressa na lei, possa ser concretamente aplicada. Como adverte Hely Lopes Meirelles, o regulamento não pode "contrariar a lei (contra legem), nem ir além do que ela dispõe (ultra legem)".

Quando o Executivo exorbita dessa competência, editando um ato que restringe direitos onde a lei não o fez, ou que subverte a finalidade da norma, ele não apenas pratica um ato de ilegalidade, mas também usurpa a competência do Poder Legislativo, violando o princípio da separação dos poderes (art. 2º, CF/88).

A inconstitucionalidade formal do decreto 11.150/22: A usurpação da função legislativa

O decreto 11.150/22 é um exemplo paradigmático de abuso do poder regulamentar. Em vez de se limitar a detalhar a aplicação da lei do superendividamento, o decreto efetivamente a reescreveu, impondo restrições que o legislador, após amplo debate democrático, optou por não incluir. Dois pontos são emblemáticos:

Ao assim proceder, o decreto não apenas contrariou a lei, mas invadiu a esfera de competência do Congresso Nacional, legislando de forma autônoma e violando o princípio da legalidade estrita (art. 5º, II, CF/88).

A inconstitucionalidade material: A violação da dignidade humana e a vedação ao retrocesso social

Para além do vício formal, o conteúdo do decreto ofende o núcleo da Constituição.

O esvaziamento do mínimo existencial e a ofensa à dignidade humana: O princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) é o epicentro do ordenamento jurídico brasileiro. Dele decorre o direito a um mínimo existencial, que, conforme o STF (ADPF 45), não se resume à mera sobrevivência, mas abrange um conjunto de condições materiais indispensáveis a uma vida digna.

Ao fixar um valor aviltante como mínimo existencial, o decreto nega essa premissa. Ele condena o consumidor a uma situação de penúria, tornando a promessa de "resgate da dignidade" da lei uma ficção. Como já decidiram tribunais estaduais, a aplicação cega desse critério viola a dignidade e esvazia a proteção consumerista.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. REPACTUAÇÃO DE DÍVIDA. SUPERENDIVIDAMENTO. TUTELA ANTECIPADA. REQUISITOS DO ART. 300 DO CPC PREENCHIDOS. LIMITAÇÃO DOS DESCONTOS EM FOLHA DE PAGAMENTO E EM CONTA CORRENTE. POSSIBILIDADE, DIANTE DAS PARTICULARIDADES DO CASO. CARACTERIZAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. AFASTAMENTO DA INCIDÊNCIA DO DECRETO 11.150/22. ASTREINTE. VALOR. Logrando a parte devedora, em cognição sumária, demonstrar a situação de superendividamento, admite-se a limitação dos descontos em folha de pagamento e conta corrente, no percentual de 35%, a fim de garantir-lhe o mínimo existencial. Afastamento da aplicabilidade do Decreto 11 .150/2022 na caracterização do mínimo existencial, por contrariar a principiologia protetiva do sistema consumerista e retirar sobremaneira a aplicabilidade da ação de repactuação de dívidas por superendividamento, violando a hierarquia normativa do ordenamento jurídico brasileiro. A astreinte deve guardar uma relação de razoabilidade e proporcionalidade ao caso concreto, como na hipótese dos autos, não comportando, portanto, a sua redução, uma vez que em conformidade com os valores praticados por esta Câmara. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.(Agravo de Instrumento, 50353103520248217000, Vigésima Terceira Câmara Cível, TJ/RS, Relator.: Pedro Luiz Pozza, Julgado em: 23/4/2024)

(TJ/RS - Agravo de Instrumento: 50353103520248217000 PORTO ALEGRE, Relator: Pedro Luiz Pozza, Data de Julgamento: 23/4/2024, Vigésima Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 30/4/2024)

A vedação ao retrocesso social: A lei do superendividamento é uma norma de avanço social, que densifica o dever estatal de proteção ao consumidor (art. 5º, XXXII, e 170, V, da CF/88). O decreto, ao restringir drasticamente seu alcance, representa um claro retrocesso social, violando o "efeito cliquet", que impede a supressão de níveis de proteção de direitos fundamentais já alcançados.

O controle judicial do decreto: Entre a legalidade e a constitucionalidade

A discussão sobre a natureza do vício de um decreto que exorbita seu poder - se mera ilegalidade ou inconstitucionalidade - é clássica. O STF, em precedentes mais antigos, entendia que a questão se resolvia no plano da legalidade.

Contudo, a doutrina e a jurisprudência mais modernas evoluíram. Quando um decreto, ao contrariar uma lei, atinge diretamente um princípio constitucional, a ofensa é também à Constituição. No caso do decreto 11.150/22, a violação é dupla e direta: à separação de poderes (vício formal) e à dignidade da pessoa humana (vício material).

Portanto, o Poder Judiciário não só pode, como deve, exercer o controle difuso de constitucionalidade, afastando a aplicação do decreto no caso concreto. Essa prerrogativa, inerente a todo juiz e tribunal, é o principal instrumento para garantir que um ato infralegal manifestamente inconstitucional não produza efeitos e não aniquile direitos fundamentais. A existência da ADPF 1006 no STF não impede nem retira a necessidade desse controle incidental.

Conclusão

O decreto presidencial 11.150/22 representa uma grave ferida ao Estado Democrático de Direito. Sob o disfarce de regulamentação, o ato normativo usurpou a função do Legislativo, subverteu a finalidade de uma importante lei de proteção social e violou o princípio mais basilar da República: a dignidade da pessoa humana.

A análise de sua flagrante inconstitucionalidade, tanto formal quanto material, demonstra que o único caminho compatível com a supremacia da Constituição é o seu afastamento pelo Poder Judiciário.

O controle de constitucionalidade, nesse contexto, deixa de ser uma mera questão técnica e se torna o instrumento por excelência para a defesa dos direitos fundamentais e para a reafirmação de que, no Brasil, nenhuma norma pode se sobrepor à dignidade de seu povo

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Referência bibliográfica

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Atualizado por Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. 44ª ed. São Paulo: Malheiros, 2023.

Vinícius Fonseca da Silva
Advogado Tributarista focado em transações, recuperação de créditos e defesas fiscais para empresas.

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