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O crime do elevador. Quando a violência se torna visível, mas a vítima continua invisível

O crime do elevador expõe a violência estrutural contra a mulher e a invisibilidade da vítima no processo penal. A Justiça precisa ouvir, proteger e reconhecer.

21/8/2025

Em julho de 2025, o Brasil assistiu, estarrecido, às imagens de uma jovem mulher sendo brutalmente agredida por seu namorado dentro de um elevador em Natal/RN. Sessenta e um golpes. Sessenta e um socos no rosto. Marcas de uma violência que, embora registrada por câmeras, não é inédita - apenas foi desvelada. O crime do elevador não é exceção. É apenas um dos que escaparam da invisibilidade que cerca milhares de mulheres agredidas, silenciadas e desacreditadas.

O elevador é mais do que cenário. Existe em todos os lugares: nas casas, nas ruas e no ambiente de trabalho. O crime do elevador, assim como todo crime, é uma relação de poder, em que o agressor se coloca em posição superior à da sua presa, faz uma conta mental de que vale o risco da tentativa diante do fato de que outrora cometeu outros crimes e saiu impune.

O elevador é o espaço onde a vítima não pode fugir, não pode gritar, não pode resistir. E, muitas vezes, não pode provar, porque, longe das câmeras, o que resta à vítima é a palavra - e a palavra da mulher, ainda hoje, é frequentemente tratada como suspeita, exagerada ou mentirosa. Outras vezes, pode provar, mas escolhe silenciar, não por estratégia, mas por imposição, ou ainda, por estímulo de terceiros. Com certa frequência nos Fóruns, a vítima de violência doméstica é estimulada a silenciar-se. Em um primeiro momento, pode parecer que se trata de uma escolha. Mas quando a opção pelo silêncio passa a ser uma estratégia para proteção própria ou do seu algoz, é porque, em verdade, não tinha outra escolha e, portanto, o sistema de justiça falhou.

A repercussão do crime do elevador trouxe à tona uma questão estrutural: por que o sistema de justiça ainda falha em reconhecer a vítima como sujeito de direitos? A resposta pode estar na própria legislação. A figura do JDG - Juiz das Garantias, por exemplo, criada pela lei 13.964/19 foi concebida para o controle da legalidade da investigação (art. 3º -B do CPP). No entanto, em nenhum dos dispositivos que tratam do JDG - Juiz das Garantias há menção à vítima. Nenhuma linha. Nenhuma previsão de escuta, proteção ou participação da vítima, sequer o direito de acesso aos autos, de ser notificada quando, ainda na fase pré-processual, o investigado venha livra-se solto, ou direito a um recurso em caso de trancamento da investigação a pedido do investigado.

Essa omissão normativa é mais do que simbólica, é grave, porque revela a costumeira invisilidade da vítima. Especialmente quando se sabe que o JDG será responsável por decidir sobre medidas cautelares, acesso aos autos, produção antecipada de provas e homologação de acordo - decisões que impactam diretamente a segurança e os direitos da vítima. Ignorar sua presença é perpetuar sua invisibilidade. 

É bem verdade que o crime do elevador não está alcançado pelo JDG, uma vez que o Tribunal do Júri e a Violência Doméstica estão fora do seu alcance por força da decisão do STF. Entretanto, importa trazê-lo, pois se tornou visível ao ser captado pelas câmeras, mas e as demais vítimas mulheres que não têm câmeras, nem testemunhas, nem apoio? O sistema precisa enxergá-las. Precisa ouvi-las. Precisa protegê-las, ao invés de banalizar a memória traumática e sua repetida negação e silenciamento. E isso começa por reconhecer, na legislação e na prática, que a vítima não é um detalhe do processo penal - é seu ponto de partida.

Simone Sibilio
Promotora de Justiça-MPRJ. Mestranda em Direito pela PUC-Rio.

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