Migalhas de Peso

O princípio da não cumulatividade e a reforma tributária

A não cumulatividade é chave na reforma tributária, garantindo neutralidade e crédito amplo, mas exige ajustes e tecnologia para eficácia plena.

22/8/2025

Introdução

Podemos afirmar que o sustentáculo da reforma tributária brasileira é o princípio da não cumulatividade. Este princípio visa evitar a tributação em cascata ao longo das diversas fases do processo produtivo e comercial, assegurando que o imposto incida apenas sobre o valor agregado em cada etapa. Neste artigo, abordaremos os conceitos fundamentais da não cumulatividade, suas técnicas de aplicação, as formas de cumulatividade que ainda persistem no sistema tributário, e os desafios contemporâneos diante das inovações constitucionais e tecnológicas.

A não cumulatividade e as formas de cumulatividade

A não cumulatividade pode ser definida como uma técnica aplicada a tributos plurifásicos, na qual a tributação incide exclusivamente sobre o valor acrescentado em cada fase da cadeia produtiva ou comercial, desde a extração até o consumo final. Em outras palavras, o tributo deve ser cobrado e recolhido apenas sobre o valor agregado em cada etapa.

Por outro lado, a cumulatividade ainda se manifesta em quatro formatos principais:

1. Cumulatividade explícita:

Caracteriza-se pela incidência do tributo em várias etapas sem possibilidade de compensação dos impostos pagos anteriormente. Exemplos clássicos são o ISS (decreto 406/1968) e o regime de PIS/COFINS (lei 9.718/1998), que garantem arrecadação contínua ao Fisco, mas elevam a carga tributária sobre o contribuinte.

2. Cumulatividade residual:

Não está prevista na estrutura original do tributo, mas resulta de falhas normativas e operacionais. Apesar de o ICMS e o PIS/COFINS adotarem a não cumulatividade para evitar a tributação em cascata, restrições ao crédito e incidência cruzada acabam por reintroduzir cumulatividade indireta, prejudicando a neutralidade e a competitividade das empresas.

3. Cumulatividade operacional:

Ocorre por entraves práticos que dificultam a utilização dos créditos tributários previstos em lei. Aqui, o problema não é a vedação legal ao crédito, mas sim dificuldades na compensação, ressarcimento ou utilização dos créditos acumulados.

4. Cumulatividade cruzada:

Surge quando tributos distintos incidem sobre a base de cálculo um do outro, gerando cumulatividade indireta, mesmo que isoladamente sejam não cumulativos. Essa interação prejudica a neutralidade tributária.

Essas formas de cumulatividade resultam em distorções que afastam o sistema tributário da neutralidade plena recomendada pela OCDE (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2023).

Técnicas para a neutralidade tributária

Existem duas técnicas principais para se alcançar a neutralidade na tributação plurifásica:

Crédito físico:

Nesta técnica, o direito ao crédito é limitado a bens e serviços que integram fisicamente o produto final ou que são consumidos diretamente no processo de industrialização ou comercialização. É uma técnica mais restritiva, adotada atualmente na apuração de créditos do ICMS e IPI.

Exemplo: Uma fábrica de móveis pode tomar crédito sobre a madeira (parte física do produto), mas não sobre serviços terceirizados de limpeza ou segurança.

Crédito Financeiro:

Mais abrangente, essa técnica objetiva a neutralidade plena. Além dos insumos físicos, permite o crédito sobre despesas essenciais ou relevantes à atividade econômica, mesmo que não integrem fisicamente o produto. É a técnica aplicada no PIS/COFINS não cumulativos.

Exemplo: A mesma fábrica pode tomar crédito sobre aluguel de galpão, serviços de consultoria ou equipamentos de proteção individual essenciais.

Marco constitucional e expansão da técnica do crédito financeiro

A busca pela neutralidade via crédito financeiro começou no Brasil com a EC 20/1998 e foi consolidada pela emenda 42/03, que ampliou a não cumulatividade para as contribuições sociais, como PIS e COFINS (BRASIL, 1998; 2003). Essas mudanças permitiram o creditamento mais abrangente, incluindo insumos essenciais à atividade econômica, mesmo que não integrassem o produto final.

Mais recentemente, a EC 132/23 introduziu nos artigos 153 e 155 da Constituição Federal o direito ao crédito amplo, imediato e integral do imposto incidente em todas as etapas da cadeia produtiva e comercial, consolidando a técnica do crédito financeiro.

A tão almejada neutralidade, alcançada por meio da não cumulatividade, contribuirá para a mitigação das distorções ainda presentes na cadeia produtiva, além de favorecer a redução das fraudes fiscais, especialmente com a adoção de mecanismos tecnológicos como o split payment.

Porém, há uma exceção expressa: não será permitido o crédito sobre bens ou serviços utilizados para fins pessoais pelo contribuinte pessoa física.

Crítica à exceção e aplicação do distinguishing

Essa exceção pode gerar distorções à neutralidade tributária quando aplicada rigidamente. Deve-se admitir a aplicação da técnica do distinguishing, para relativizar a regra em casos específicos.

Por exemplo, hotéis são formalmente consumidores finais de obras de arte, que não dão direito ao crédito pelo uso pessoal. Contudo, essas obras são essenciais para a decoração e ambientação, impactando diretamente a atividade-fim e a experiência do hóspede. Negar o crédito nesses casos fere o princípio da neutralidade tributária ao desconsiderar a relevância econômica do bem.

Desafios da prova do crédito tributário e capacidade fiscalizatória

Outra crítica importante reside na limitação imposta pelo art. 128 e, principalmente, pelo art. 166 do CTN, que condiciona o aproveitamento do crédito à comprovação de que o tributo não foi repassado ao próximo elo da cadeia produtiva e foi pago pelo elo anterior.

Essa exigência contraria a lógica dos tributos indiretos, cuja essência é o repasse do encargo financeiro ao consumidor final. Exigir que o contribuinte comprove o não repasse do tributo é oneroso e desproporcional, sobretudo quando o Fisco dispõe de avançados meios tecnológicos para acesso e cruzamento de informações fiscais, como NF-e, SPED, EFD-Contribuições e e- Financeira (CITRON; PASQUALE, 2021).

Em um cenário de tecnologia avançada, é questionável transferir ao contribuinte a responsabilidade por comprovações complexas relativas a terceiros, enquanto o Fisco possui ferramentas automatizadas de fiscalização.

A perspectiva do devido processo legal tecnológico

O avanço tecnológico exige que se repense o modelo assimétrico de obrigações e ônus probatórios no direito tributário, em respeito à isonomia, segurança jurídica e funcionalidade da não cumulatividade.

Nesse contexto, destaca-se o trabalho de Danielle Keats Citron e Frank Pasquale, que propõem o conceito de Due Process Tecnológico. Eles defendem mecanismos efetivos para contestação de decisões automatizadas (como classificações financeiras e habitacionais), assegurando regularidade processual, possibilidade de revisão e alinhamento com os princípios do devido processo legal (CITRON; PASQUALE, 2021).

Conclusão

A não cumulatividade é um princípio basilar para a justiça e eficiência do sistema tributário brasileiro, sendo o alicerce das reformas recentes. As técnicas de crédito físico e financeiro são essenciais para garantir a neutralidade tributária plena, porém desafios práticos e normativos ainda persistem.

A consolidação constitucional do crédito financeiro e a incorporação do direito ao crédito amplo marcam avanços importantes, mas a manutenção de exceções e a imposição excessiva de ônus probatórios ao contribuinte representam obstáculos que precisam ser repensados à luz da capacidade tecnológica do Estado e dos princípios do devido processo legal em contexto digital.

A adoção do devido processo tecnológico e a flexibilização das exceções, por meio do distinguishing, são caminhos promissores para um sistema tributário mais justo, transparente e eficiente.

_______

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. BRASIL. Emenda Constitucional 20, de 1998.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 42, de 2003. BRASIL. Emenda Constitucional 132, de 2023. BRASIL. Decreto 406, de 1968.

BRASIL. Lei 9.718, de 1998.

BRASIL. Código Tributário Nacional, Decreto-Lei 5.172, de 1966.

CITRON, Danielle Keats; PASQUALE, Frank. Due Process Tecnológico: Protegendo Direitos no Mundo Digital. 2021.

Adriana Serrano Cavassani
Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Sócia do escritório Martins e Serrano Cavassani Sociedade de Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Abertura de empresas e a assinatura do contador: Blindagem ou burocracia?

3/12/2025

Como tornar o ambiente digital mais seguro para crianças?

3/12/2025

Recuperações judiciais em alta em 2025: Quando o mercado nos lembra que agir cedo é um ato de sabedoria

3/12/2025

Seguros de danos, responsabilidade civil e o papel das cooperativas no Brasil

3/12/2025

ADPF do aborto - O poder de legislar é exclusivamente do Congresso Nacional

2/12/2025