1. Introdução
O contraditório é uma das garantias processuais fundamentais do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal. No entanto, sua aplicação sofre adaptações no contexto das medidas protetivas de urgência previstas na lei Maria da Penha. Essas adaptações, embora excepcionais, refletem a tentativa de equilibrar o direito de defesa com a necessidade imediata de proteção da mulher em situação de risco. Este ensaio propõe uma análise crítica sobre a forma como o contraditório é aplicado nas protetivas, destacando os momentos distintos em que ocorre, suas implicações práticas e a possibilidade de inversão da lógica diante de prova robusta apresentada pela defesa.
2. O contraditório postergado na concessão das medidas protetivas
Ao contrário do que ocorre na maioria dos processos judiciais, onde o contraditório antecede a decisão, nas medidas protetivas o contraditório da pessoa submetida às medidas protetivas - geralmente o homem - é postergado. Isso ocorre porque essas medidas são deferidas com base na urgência e no risco iminente alegado pela mulher. O objetivo é permitir que o juiz atue com celeridade e evite que a eventual demora na resposta judicial torne inócua a proteção. Assim, na fase inicial, a palavra da vítima tem peso probatório suficiente para justificar a imposição imediata das restrições, mesmo sem apresentação de provas materiais. Trata-se de uma exceção justificada pela emergência e pela natureza preventiva da medida.
3. Risco de desequilíbrio: Decisão unilateral sem contraditório
Ainda que a justificativa legal para a postergação do contraditório esteja fundada na lógica da proteção urgente, é inegável que essa prática traz riscos de desequilíbrio. Ao se aceitar, como regra, a imposição de restrições com base apenas na versão unilateral da vítima, abre-se a possibilidade de abusos e de concessões indevidas. O homem intimado não tem chance de se manifestar antes de ser atingido por medidas que impactam diretamente sua liberdade, rotina e sua convivência familiar. Esse modelo, embora constitucionalmente tolerado, exige atenção redobrada do Judiciário quanto à duração e à proporcionalidade das restrições.
4. Contraditório antecipado da vítima na fase de revogação
Em contrapartida, quando o homem busca a revogação das medidas protetivas, o contraditório é imediatamente garantido à mulher. Ao receber o pedido de revogação, o juiz geralmente determina a intimação da suposta vítima para que se manifeste antes de decidir. Essa prática mostra que o sistema assegura à mulher um contraditório prévio, ainda que não tenha concedido o mesmo ao homem no início da medida. Essa assimetria revela um paradoxo: o deferimento das restrições ocorre sem a oitiva prévia do homem intimado, mas sua revogação exige, obrigatoriamente, a oitiva da suposta vítima. Trata-se de uma inversão de pesos que merece reflexão.
5. Dois momentos distintos do contraditório nas protetivas
A prática forense revela, portanto, dois momentos bem distintos do contraditório nas medidas protetivas:
- Na concessão: o contraditório do homem é, via de regra, postergado. Ele será ouvido somente após o deferimento das medidas, o que pode levar dias ou até semanas.
- Na revogação: o contraditório da mulher é antecipado. Qualquer pedido de revogação de medidas protetivas formulado pelo homem impõe ao juiz o dever de ouvir a suposta vítima previamente.
Essa diferença na aplicação do contraditório expõe a disparidade de tratamento entre as partes envolvidas, reforçando a ideia de que o processo das protetivas não segue a lógica tradicional do processo penal ou cível.
6. A possibilidade de inversão do contraditório diante de provas robustas
O ponto mais crítico da análise está na seguinte reflexão: se o juiz pode conceder medidas restritivas de forma sumária, sem ouvir o homem intimado, por que não pode revogá-las da mesma forma, quando houver prova cabal de que o risco não existe? Em situações nas quais o homem apresenta documentos, imagens, mensagens ou qualquer elemento de prova prima facie que desminta a narrativa da vítima, a lógica da urgência deveria permitir que o juiz revogasse imediatamente as medidas, postergando, dessa vez, o contraditório da suposta vítima. Tal inversão seria uma forma de aplicar simetricamente o critério de urgência e conferir tratamento mais equilibrado às partes, sem prejudicar o direito de defesa de nenhuma delas.
7. Conclusão
O contraditório nas medidas protetivas de urgência é aplicado de forma assimétrica: postergado ao homem na concessão e antecipado à mulher na revogação. Essa lógica, embora juridicamente justificável em razão do risco, precisa ser revisitada diante da realidade forense, onde muitas vezes as medidas são mantidas por longos períodos sem uma análise efetiva do risco. A proposta de inverter o contraditório em casos de prova prima facie apresentada pela defesa é uma solução que confere simetria ao procedimento e resgata a lógica de proteção baseada em fatos, não em presunções. Afinal, se é possível restringir direitos sem ouvir, deve ser igualmente possível restituí-los quando há prova suficiente para tanto.