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O direito humano e fundamental de acesso à justiça

O acesso à justiça como direito humano fundamental: Um estudo que propõe superar a justiça tardia e institucionalizada com soluções além do Judiciário.

28/8/2025

O direito humano e fundamental de acesso à justiça: Para além da jurisdição estatal

Introdução

O direito de acesso à justiça, embora consagrado em diversos diplomas internacionais e constitucionais, ainda encontra barreiras práticas, especialmente nos países marcados pela desigualdade social e pela sobrecarga do sistema judicial. Este artigo analisa o acesso à justiça como um direito humano fundamental, destacando sua natureza, fundamentos e desafios, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos e da realidade brasileira.

O acesso à justiça como direito humano fundamental

A concepção do acesso à justiça como o mais básico dos direitos humanos se justifica por sua função instrumental: é por meio dele que se viabiliza a proteção e reivindicação dos demais direitos fundamentais. A ausência desse acesso representa não apenas uma violação isolada, mas um bloqueio sistêmico ao exercício pleno da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

Essa centralidade está expressa tanto em documentos internacionais, como a DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos, quanto em tratados de proteção regional, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). No plano interno, o art. 5º da CF/88 consagra diversas garantias processuais que conformam o conteúdo normativo do direito de acesso à justiça.

Mais do que uma via para o Judiciário, trata-se de um direito que impõe ao Estado a criação de estruturas e políticas públicas capazes de oferecer canais efetivos de resolução de conflitos, especialmente para os grupos socialmente vulneráveis.

O contexto da hiperjudicialização e a crise do modelo jurisdicional

A realidade brasileira, marcada por mais de 80 milhões de processos em tramitação, demonstra a saturação do modelo tradicional de justiça. Essa sobrecarga compromete a razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CF) e agrava a chamada injustiça institucionalizada, conforme advertiu Rui Barbosa: “justiça tardia nada mais é do que injustiça”.

A análise dos dados do relatório Justiça em Números do CNJ evidencia que, mesmo com avanços pontuais, a taxa de congestionamento processual permanece elevada, comprometendo a efetividade da tutela jurisdicional.

Nesse cenário, ganha relevo o movimento contemporâneo de desjudicialização e de pluralização do sistema de justiça, por meio de instrumentos como mediação, conciliação, arbitragem e atos notariais e registrais.

A evolução do conceito de acesso à justiça: As ondas renovatórias

A doutrina de Mauro Cappelletti e Bryant Garth propôs a conhecida teoria das ondas renovatórias de acesso à justiça, que evidencia a transformação histórica do conceito:

Essa terceira onda valoriza meios alternativos de resolução de conflitos, reconhecendo que o processo judicial não é a única nem a melhor forma de solução de todas as disputas. A proposta é reorganizar o sistema em torno de mecanismos mais simples, céleres, baratos e adaptáveis à complexidade das demandas sociais.

A distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais

A doutrina distingue, com fundamento em autores como Mazzuoli, Sarlet e Comparato, os direitos fundamentais, positivados no ordenamento jurídico interno, dos direitos humanos, consagrados em tratados internacionais. Contudo, na prática, a interpenetração entre ambos confere ao acesso à justiça a natureza de direito humano fundamental, exigindo dupla proteção: interna (constitucional) e internacional (convencional).

A Declaração de Viena de 1993 consagrou princípios essenciais como a universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relacionalidade dos direitos humanos. O acesso à justiça, nesse sentido, conecta-se diretamente à efetividade de todos os demais direitos: sem justiça acessível, não há como exigir ou defender os demais bens jurídicos tutelados.

Acesso à justiça e políticas públicas

A efetivação do acesso à justiça impõe ao Estado uma função prestacional, voltada à implementação de políticas públicas estruturantes, com alocação de recursos, capacitação de agentes, ampliação do alcance territorial da justiça e diversificação de métodos.

Como destaca Amartya Sen, o desenvolvimento deve ser compreendido como expansão das liberdades reais das pessoas, o que demanda investimento em saúde, educação, habitação e também em mecanismos eficazes de justiça.

Na realidade brasileira, o modelo de justiça formal é, muitas vezes, excludente, especialmente em regiões periféricas. Por isso, urge ampliar o conceito de acesso à justiça para incluir formas não estatais e comunitárias de resolução de conflitos, como a mediação comunitária, os CEJUSCs - Centros Judiciários de Solução de Conflitos, e o protagonismo dos cartórios extrajudiciais.

A contribuição do notariado e dos serviços extrajudiciais

Uma das grandes inovações normativas foi a autorização legal para que os cartórios atuem como agentes de pacificação social, conforme o provimento CNJ 67/18 atualmente absorvida pelo provimento 149/23 do CNJ que implementou no Brasil o Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial, que regulamenta, dentre outras atribuições, a prática da mediação e conciliação nos serviços notariais e registrais. Essa atuação, supervisionada pelos NUPEMECs dos Tribunais, representa um avanço significativo na horizontalização do sistema de justiça.

Além disso, a tramitação do PL 6.204/19, que trata da desjudicialização das execuções civis, poderá retirar milhões de processos do Judiciário e transferi-los aos cartórios, ampliando a efetividade da execução e garantindo maior celeridade e redução de custos.

Essas medidas respondem à necessidade de um sistema de justiça descentralizado, eficiente, tecnicamente qualificado e acessível, especialmente para a população que mais sofre com a morosidade e complexidade do processo judicial tradicional.

Considerações finais

O acesso à justiça é um direito humano fundamental, essencial à realização da dignidade da pessoa humana e à efetivação dos demais direitos. Sua proteção não se esgota no reconhecimento formal, sendo necessário assegurar meios reais, eficazes e acessíveis para que todas as pessoas, independentemente de sua condição social, econômica ou geográfica, possam resolver seus conflitos com justiça e dignidade.

A superação da injustiça institucionalizada passa pela reconfiguração do sistema de justiça, incorporando novas práticas, atores e estruturas, dentro e fora do Judiciário. O fortalecimento dos métodos alternativos, das serventias extrajudiciais e das políticas públicas de pacificação social é caminho necessário e urgente.

O Brasil precisa romper com o paradigma da judicialização excessiva e construir um modelo de justiça que seja, de fato, para todos.

Marcelo Lessa da Silva
Pós-Doutor em Direito (UniSalento/ITA); Doutor em Direito e Teoria Política (UNIFOR); Mestre em Direito (UCP); Mestre em Gestão Pública (UNESA); Professor, Tabelião e Diretor de Estudos do IEPTB/RO

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