Recentemente, o TJ/RJ decidiu, a pretexto de combater o chamado “golpe do falso advogado”, impor o teto diário de 100 consultas por usuário não habilitado no PJe. Embora o diagnóstico do problema estivesse correto - há quadrilhas atuando de forma interestadual, com engenharia social apoiada em dados reais de processos para conferir verossimilhança, exigir depósitos “de custas” e simular acordos -, fato é que não há soluções mágicas nem fáceis para problemas complexos, graves e que ultrapassam os limites do território fluminense. Numerosas operações policiais foram desencadeadas e prisões decretadas em diferentes unidades da Federação. Sentenças condenatórias também já foram proferidas contra espertalhões que se faziam passar por advogados.
Porém, o remédio escolhido pelo TJ/RJ - estabelecer um teto numérico geral e abstrato - erra o alvo. Restringir consultas a processos públicos não atinge a causa do delito - personificação fraudulenta e captação maliciosa de dados -, e ainda penaliza quem precisa pesquisar: correspondentes que atuam para várias bancas, departamentos jurídicos que monitoram litígios repetitivos, bancas que, antes mesmo da habilitação formal, realizam triagens extensas para prevenir conexões espúrias, litispendência e coisa julgada.
Ao invés de restringir o número de acessos à plataforma do PJe - Processo Judicial eletrônico, dever-se-ia investir em inteligência e fortalecer a investigação, adotando tecnologias capazes de identificar rapidamente os meliantes e preservar a segurança dos jurisdicionados e de seus dados.
A Constituição consagra a regra da publicidade (art. 5º, LX) e a exigência de julgamentos públicos (art. 93, IX). O Estatuto da Advocacia garante ao advogado o direito de examinar autos não sigilosos mesmo sem procuração (art. 7º, XIII). O CPC reflete essa matriz: reforça a publicidade (art. 11), a prática eletrônica (art. 193) e, no art. 337, condiciona a boa técnica defensiva à pesquisa ampla para arguição de litispendência, coisa julgada e conexão.
Um limite de 100 consultas por dia tende a colidir com esse arranjo constitucional e legal por três razões. Primeiro, por deslocar uma exceção (restrição) para o lugar da regra (acesso), sem base legal específica para processos não sigilosos. Segundo, por atingir o núcleo da prerrogativa profissional de examinar autos, especialmente em ambientes de contencioso de volume, onde o exame depende de amostragem larga e de correlações entre feitos. Terceiro, por produzir efeitos sistêmicos adversos: ao reduzir a capacidade de detectar duplicidades, reunir feitos conexos e mapear padrões, a restrição favorece exatamente o que se pretende coibir, abrindo espaço para litigância abusiva e dispersão de demandas.
O Direito brasileiro já oferece instrumentos cirúrgicos para lidar com abusos sem sacrificar a publicidade. São eles a recomendação CNJ 159/24, que orienta a identificação e o tratamento de litigância abusiva com triagens e critérios objetivos; e a tese firmada no Tema 1.198 do STJ, que reforça a possibilidade de exigir emenda e esclarecimentos quando houver indícios de abuso. Troca-se o bloqueio indiscriminado por filtros qualificados, com base em comportamento e evidência.
Autenticar, auditar e cooperar
Há um caminho tecnicamente sólido para elevar a segurança sem punir o acesso legítimo.
- Autenticação multifatorial (MFA/2FA): ampliar o uso de 2FA para perfis e cenários de maior risco reduz drasticamente o sequestro de credenciais, preservando a experiência do usuário qualificado.
- Trilhas de auditoria: o PJe registra “acessos de terceiros”, quem consultou, quando e em quais autos. Trata-se de um ativo probatório pronto para investigação dirigida nos casos em que a fraude se concretizou, com cooperação entre Judiciário, OAB, MP e polícias.
- Governança de credenciais: escritórios de volume devem adotar gestão de certificados digitais e credenciais, com logs corporativos (quem, quando, de onde e por qual sistema acessou) para rastreabilidade interna e resposta a incidentes.
Neste ponto, é obrigatório reconhecer de público o acerto da OAB/RJ ao instalar a Comissão Especial de Combate ao Golpe do Falso Advogado e ao lançar cartilha de prevenção, com orientações claras ao cidadão e à advocacia, sinais de alerta, verificação de identidade do profissional e canais de denúncia. É um passo institucional que prioriza educação, coordenação e tecnologia, exatamente o que se espera de uma resposta eficaz ao problema, sem inversões de lógica e sem restringir a publicidade dos atos.
Cabe por fim destacar que medidas de segurança não podem prescindir de proporcionalidade, legalidade e eficiência. Um teto de consultas para processos públicos não ataca o mecanismo do golpe, mas deteriora a qualidade da defesa, especialmente em cenários de contencioso massivo. A combinação de MFA, auditoria de logs, investigação cooperativa e governança de credenciais protege o jurisdicionado, respeita a Constituição, preserva prerrogativas e fortalece a confiança no sistema. É nessa direção, e não na do cerceamento quantitativo, que reside a verdadeira segurança.