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Jurimetria: O que os dados revelam sobre a Justiça

Jurimetria aplica estatística e ciência de dados ao Direito, revelando padrões da Justiça, ampliando transparência e apoiando decisões mais eficientes.

1/9/2025

Jurimetria, em linguagem direta, é usar estatística e ciência de dados para observar o Direito com lupa numérica. Em vez de olhar apenas para argumentos e conceitos jurídicos, passamos a olhar também para o que os números mostram sobre o funcionamento real da Justiça: como certos temas aparecem ao longo do tempo, em quais instâncias se concentram, quais etapas costumam demorar mais e onde há maior variação de entendimentos. A intuição por trás disso não é recente. Em 1949, Lee Loevinger publicou na Minnesota Law Review o artigo “Jurimetrics - The Next Step Forward”, defendendo que o comportamento dos tribunais também poderia ser estudado por métricas, a exemplo do que já se fazia em outras áreas. A proposta abriu caminho para um método que não substitui a dogmática jurídica, mas a complementa com descrições mais fiéis da realidade forense.

No Brasil, a discussão deu um salto com o DataJud, repositório público instituído pelo CNJ por meio da resolução CNJ 331/20. Ao unificar milhões de registros processuais, o DataJud permite enxergar o Judiciário por dentro e em larga escala. Em vez de depender de percepções fragmentadas, pesquisadores, gestores públicos e profissionais do direito conseguem responder, com mais segurança, a perguntas simples e importantes: quais assuntos dominam a pauta em determinado período, que fases processuais concentram gargalos, como variam os pedidos de tutela em temas específicos, qual o comportamento recursal em certas matérias e de que maneira novas leis ou precedentes vinculantes alteram a prática cotidiana. Essa visão panorâmica favorece transparência, auxilia a gestão judiciária e ilumina políticas públicas, porque fornece diagnósticos verificáveis sobre o que de fato acontece nos processos.

Para o leitor não advogado, vale imaginar a jurimetria como um “raio-X” do sistema de justiça. Ela ajuda a localizar decisões relevantes em meio a um volume gigantesco de julgados, a medir a frequência de determinados fundamentos, a identificar quando uma orientação começa a se consolidar e quando, ao contrário, há grande dispersão de entendimentos. Por exemplo, o profissional poderá analisar como os magistrados sentenciam determinado tema e ter uma base sobre as abordagens mais aceitas. Ao tornar visíveis padrões que a olho nu passam despercebidos - diferenças regionais em temas semelhantes, ciclos de aumento e queda de litigiosidade, efeitos de mudanças legislativas sobre a tramitação - a jurimetria oferece um mapa legível de um terreno complexo, em linguagem compreensível para pesquisadores, jornalistas, gestores e cidadãos.

É claro que existem limites e cuidados. Bases judiciais são construídas a partir de documentos muito diferentes entre si, muitas vezes escaneados sem padrão, com metadados incompletos ou categorização heterogênea. Antes de qualquer análise, é preciso tratar os dados, documentar os critérios de limpeza e tornar o método replicável. Além disso, números contam o que foi observado, não o que necessariamente causou aquele resultado: correlação não é causalidade. Mudanças na lei, alterações de competência, criação de varas especializadas ou a simples chegada de novos magistrados podem modificar séries históricas e pedir leituras cautelosas. Há, ainda, o aspecto ético e jurídico: o tratamento de informações deve respeitar a LGPD e as regras de sigilo, sobretudo quando se trata de processos que tramitam sob segredo de justiça. A boa prática exige minimização de dados, anonimização quando couber e governança clara sobre quem acessa o quê, para qual finalidade e por quanto tempo.

Mesmo com essas ressalvas - ou justamente por causa delas - a jurimetria é valiosa. Ao tornar o sistema mais mensurável, ela incentiva a transparência e cria incentivos à eficiência. Permite avaliar a efetividade de leis e políticas, expõe gargalos que precisam de intervenção administrativa e estimula consistência decisória ao dar visibilidade à como os tribunais vêm aplicando certos critérios. Também amplia a prestação de contas à sociedade: quando decisões públicas podem ser descritas em séries e padrões, o debate sobre justiça deixa de ser apenas opinativo e passa a dialogar com evidências.

O avanço recente da inteligência artificial generativa tende a fortalecer esse movimento. Modelos capazes de ler grandes volumes de decisões e peças processuais já ajudam a organizar acórdãos por temas, identificar trechos relevantes, sumarizar fundamentos e sinalizar mudanças de orientação ao longo do tempo. Em vez de entregar respostas “mágicas”, a tecnologia bem utilizada cumpre um papel mais modesto e, ao mesmo tempo, poderoso: reduzir o atrito no acesso à informação jurídica, tornar as bases mais navegáveis e aproximar cidadãos e gestores de evidências que antes ficavam enterradas em milhares de páginas. É um passo importante para amadurecer o debate público sobre o funcionamento da Justiça.

Em suma, jurimetria não é um oráculo, e sim um método. Ela descreve, compara e ilumina o que os processos já revelam, oferecendo ao debate jurídico algo que sempre fez falta: uma camada consistente de realidade mensurada. Quando aliamos essa camada à interpretação jurídica, ganhamos decisões mais bem informadas, diagnósticos mais honestos sobre o que precisa melhorar e um caminho mais transparente para acompanhar a evolução do sistema de justiça brasileiro.

Marina Arista Silva
Advogada graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2020), inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo (2022). Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio de Jesus, autora de diversos artigos e líder do Departamento Contencioso no TM Associados.

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