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Hipoteca revitalizada

A lei 14.711/23 moderniza a hipoteca, criando a modalidade recarregável e execução extrajudicial, fortalecendo o crédito e ampliando garantias no Brasil.

1/9/2025

O objetivo central do Marco Legal das Garantias1 - lei 14.711/23 - consistiu em estimular a concessão de crédito e, consequentemente, promover a redução das taxas de juros. Para alcançar esse propósito, o mencionado diploma legal não apenas reafirmou a possibilidade tradicionalmente admitida no âmbito da hipoteca, mas também ampliou as hipóteses em que um mesmo imóvel pode servir de garantia a múltiplos créditos2.

Entre as novas possibilidades, destacam-se a hipoteca recarregável (ou estendida), a alienação fiduciária superveniente e a alienação fiduciária estendida, entre outras proposições, todas voltadas a conferir maior eficiência ao uso econômico do patrimônio imobiliário como instrumento de garantia nos créditos concedidos.

Essa reforma legislativa se revela especialmente útil em situações recorrentes nas quais o devedor já quitou parcela substancial da dívida e o bem dado em garantia mantém margem suficiente de valor - chamado de capital morto - para respaldar novo crédito.

Nesse contexto, ganha importância o indicador LTV - Loan-to-Value, que expressa, em percentual, a relação entre o valor do empréstimo e o valor de mercado do imóvel oferecido como garantia. Esse parâmetro é largamente empregado nos mercados financeiro e imobiliário para aferir o risco de crédito em operações garantidas por direitos reais.

A experiência demonstra que a eficácia das garantias está diretamente associada à redução das taxas de juros, sendo o home equity - modalidade de crédito em que o proprietário vincula o seu imóvel como garantia real - uma das alternativas mais vantajosas, sobretudo quando comparada aos empréstimos consignados ou não garantidos.

A revitalização da hipoteca se destaca entre as medidas destinadas ao fomento do crédito, sendo inspirada no bem-sucedido modelo da alienação fiduciária, aplicando-se-lhe, de forma subsidiária, as disposições previstas na legislação específica desta última.3

O novo regime jurídico da hipoteca, reformulado pela lei 14.711/23, reforça a segurança jurídica e moderniza o seu procedimento, passando a contemplar, inclusive, a possibilidade de execução extrajudicial, nos casos de inadimplemento por falta de pagamento.

Importa observar, entretanto, que esse procedimento extrajudicial de execução se restringe à hipoteca convencional4 e não se aplica ao sistema de consórcio (§ 10, art. 9º da lei 14.711/23) nem ao financiamento de atividade agropecuária (§ 13, art. 9º da lei 14.711/23).

Por seu turno, a adoção da via extrajudicial exige que o contrato contenha cláusula expressa prevendo essa opção, fazendo referência aos §§ 1º a 10 do art. 9º da lei 14.711/23, por força de determinação do § 15 do mesmo diploma legal. Faz-se a ressalva de que a via extrajudicial tem caráter facultativo, em consonância com o preceito contido no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, que prevê o amplo acesso à Justiça.

O relativo insucesso histórico da hipoteca no Brasil decorreu, em grande medida, das posições oscilantes, ao longo de décadas, do STF e do STJ, quanto à constitucionalidade e à eficácia da execução extrajudicial prevista no decreto-lei 70/1966, aplicável nos casos de inadimplemento do devedor.

A revitalização da hipoteca encontra fundamento, sobretudo, nos seguintes aspectos: a) o desequilíbrio no uso das garantias reais, visto que cerca de 98% dos créditos imobiliários no país são formalizados por meio da alienação fiduciária; b) a necessidade de diversificação e modernização dos instrumentos de garantia, ampliando as alternativas disponíveis e tornando o ambiente de crédito mais eficiente; c) o alinhamento com as práticas internacionais, nas quais a hipoteca ocupa posição de destaque, de modo que a revisão do seu regime jurídico busca tornar o sistema brasileiro mais atrativo ao capital estrangeiro, que é mais habituado com esse tipo de garantia.

Entre as inovações mais significativas atinentes à hipoteca, destaca-se a criação do art. 1.487-A do CC5, que introduziu a figura da hipoteca recarregável, inspirada no modelo francês (hypothèque rechargeable).

Esse novo dispositivo instituiu a hipoteca recarregável ou estendida, permitindo que a hipoteca inicialmente constituída possa ser utilizada para garantir novas obrigações do mesmo credor, ainda que posteriores ao registro da garantia, sem necessidade de novo registro - bastando a averbação no registro de imóveis6. Recomenda-se, ainda, que haja previsão contratual contemplando o manejo dessa faculdade de extensão da garantia.

Dentre as alterações introduzidas pelo Marco Legal das Garantias, destinadas a conferir maior efetividade à hipoteca, sobressaem-se:

(i) o § 2º do art. 1.4777 - introduziu, no sistema hipotecário, um mecanismo de vencimento cruzado (cross default), que autoriza o credor a considerar antecipadamente vencidas as demais obrigações do devedor, desde que igualmente garantidas pelo mesmo imóvel. Importa salientar, contudo, que a incidência desse dispositivo é restrita à relação bilateral entre o mesmo credor e o mesmo devedor, não se projetando sobre dívidas constituídas perante credores distintos. Essa delimitação normativa preserva a ordem de preferência entre hipotecas e evita conflitos creditórios, distinguindo-se, assim, do cross default contratual, frequentemente adotado em operações financeiras complexas, nas quais a cláusula é pactuada para vincular múltiplos credores e diversas relações obrigacionais.

(ii) O art. 1.478 do CC8, com redação dada pela lei 14.711/23 - passou a prever expressamente a sub-rogação no âmbito hipotecário, tornando-a direta, automática e célere, ainda que a execução se encontre em andamento (basta o depósito do valor devido, principal, juros e despesas). Antes da alteração, o ingresso do novo credor na posição preferencial dependia, em muitos casos, de novação ou decisão judicial. A nova redação trouxe maior clareza e segurança registral ao dispor que: a) depósito suficiente: basta o pagamento do valor devido (principal, juros e despesas) para que opere a sub-rogação, mesmo se a execução já estiver em andamento; b) manutenção da hipoteca: a garantia permanece em favor do credor (ou terceiro que paga a dívida), sem necessidade de extinção e nova constituição; c) a sub-rogação deverá ser averbada na matrícula do imóvel9 (item 30, inciso II, do art. 167, da lei 6.015/1973 c/c art. 347, do CC; d) prioridade preservada: o novo credor ocupa a mesma posição do credor original, mantendo-se a ordem hipotecária.

Importa destacar, igualmente, que o ordenamento jurídico brasileiro proíbe expressamente o pacto comissório, i.e., o credor não pode ficar com o objeto da garantia no caso de inadimplemento, conforme dispõe o art. 1.428 do CC10. Essa vedação harmoniza-se tanto com o princípio geral do Direito, que veda o enriquecimento sem causa, quanto com o princípio da menor onerosidade ao devedor - também denominado princípio da execução menos gravosa - consagrado no art. 805 do CPC.

Não obstante essa vedação, o sistema jurídico admite a convenção do pacto marciano11, pela qual o credor pode, em caso de inadimplemento, ficar com o bem dado em garantia, desde que previamente realizada avaliação justa do imóvel e assegurada ao devedor a restituição de eventual diferença a seu favor.

Continuando nesse contexto, verifica-se que o § 8º do art. 9º da lei 14.711/23 impõe ao credor a obrigação de restituir ao devedor o excedente do produto obtido com a arrematação do bem dado em garantia, seja no primeiro ou no segundo leilão. Todavia, esse mesmo comando normativo permanece silente quanto à devolução desse excedente nas hipóteses previstas nos incisos I e II do referido artigo, que tratam, respectivamente, da apropriação do bem pelo credor e da alienação a terceiro por meio de mandato legal.

Apesar dessa omissão legislativa, é razoável sustentar que a mesma lógica deve ser estendida a essas outras hipóteses de excussão do bem do devedor, em observância ao princípio segundo o qual, onde houver a mesma razão, deve prevalecer a mesma disposição normativa (ubi eadem ratio, ibi eadem legis).

Entre as disposições que regem as garantias na lei 14.711/23, reitera-se a previsão de que o devedor ou o terceiro garantidor poderá remir a execução antes que o bem seja levado a leilão, conforme o § 7º do referido diploma legal.

Sob outra perspectiva, ao se comparar a alienação fiduciária com a hipoteca, evidencia-se que esta última apresenta uma vantagem relevante no plano tributário. Na alienação fiduciária, a transferência da propriedade resolúvel ao credor implica a incidência do imposto de transmissão inter vivos e, em determinadas hipóteses, também do laudêmio, quando se tratar de imóveis situados em terrenos de marinha ou foreiros, além de qualquer outra despesa decorrente da aquisição.

Diversamente, na hipoteca, não há transferência de domínio, mas a constituição de um direito real de garantia sobre o bem. Por essa razão, e conforme prevê o § 9º, II, da lei 14.711/23, se o credor, diante do inadimplemento e da frustração dos dois leilões, optar pela venda do imóvel a terceiro mediante mandato legal, caberá a esse terceiro, ora adquirente, o pagamento do tributo de transmissão, bem como das demais despesas incidentes.

Idêntico procedimento será observado na arrematação em leilão, prevista no § 11 da lei 14.711/23, quando formalizada por ata notarial de execução da garantia hipotecária. Nessa hipótese, caberá ao arrematante o pagamento dos encargos tributários e das despesas correlatas.

Somente na hipótese de o credor optar pela apropriação direta do imóvel é que os encargos tributários e demais despesas recairão sobre ele próprio, o que demonstra que essa modalidade não lhe confere qualquer benefício adicional em relação à disciplina da alienação fiduciária.

Há outra situação em que a hipoteca revela maior atratividade: por não implicar transferência da propriedade, diminui-se de forma significativa o risco de burla às restrições estabelecidas pela lei 5.709/1971, inclusive quando se trate de imóveis rurais.

Com efeito, a supracitada lei, regulamentada pelo decreto 74.965/1974, estabelece requisitos e limites para a aquisição de imóveis rurais por pessoas naturais ou jurídicas estrangeiras. Dessa forma, se o credor for estrangeiro e o bem dado em alienação fiduciária for rural, prevalece o entendimento de que incidem os mesmos limites e condições exigidos para a aquisição direta, sob pena de utilização desse instituto como forma indireta de contornar as restrições legais impostas aos estrangeiros.

Ressalte-se, simultaneamente, que, na execução extrajudicial da hipoteca em favor de credor pessoa estrangeira, poderá se convencionar no contrato que o bem, objeto da garantia, na hipótese do inadimplemento do devedor, deverá, obrigatoriamente, ser alienado a terceiro ou ser objeto de arrematação, não se permitindo, de forma alguma, nesse caso, ser apropriado pelo credor.

Prosseguindo na análise dos aspectos da hipoteca em cotejo com a alienação fiduciária, importa destacar que, no regime da alienação fiduciária superveniente, admite-se a constituição de nova alienação fiduciária sobre imóvel já gravado por garantia anterior. Essa hipótese, anteriormente vedada, foi expressamente autorizada pela lei 14.711/23.

Não obstante, essa inovação legislativa não elimina uma limitação essencial: a alienação fiduciária superveniente permanece subordinada à primitiva. Assim, conquanto o negócio jurídico seja válido desde a sua constituição, a sua eficácia dependerá da verificação de condição suspensiva - evento futuro e incerto - consistente, alternativamente, no adimplemento integral da obrigação, com a consequente consolidação da propriedade plena em favor do devedor fiduciante, ou no inadimplemento, hipótese em que a propriedade se consolidará em favor do credor fiduciário originário.

Diversamente, no âmbito da hipoteca, ainda que se constitua pluralidade de garantias e de credores sobre o mesmo bem, todas essas garantias adquirem eficácia desde o seu registro, observada apenas a ordem de preferência estabelecida pela prioridade.

Decerto, com as recentes atualizações legislativas e o aperfeiçoamento de sua eficiência, a hipoteca ressurge com vigor renovado, reafirmando-se como um dos mais tradicionais e consistentes instrumentos de garantia do crédito. A sua relevância histórica, aliada à segurança jurídica que lhe é peculiar, sustenta a expectativa de que retome posição de destaque no cenário jurídico brasileiro, contribuindo para o fortalecimento das relações contratuais e para o dinamismo da economia nacional.

Entretanto, deve-se reconhecer que a plena revitalização da hipoteca somente se dará se, além do respaldo normativo, houver sua efetiva aceitação pelo mercado, efetividade do procedimento de execução extrajudicial e uma mudança cultural, ainda fortemente voltada em favor da alienação fiduciária.

Pelas razões acima expostas e uma vez superados esses entraves, a hipoteca poderá não apenas recuperar seu espaço, mas também assumir posição de protagonismo em relação à alienação fiduciária, consolidando-se como instrumento de garantia mais equilibrado, versátil e adequado às exigências contemporâneas do crédito imobiliário.

_______

1 O denominado Marco Legal das Garantias, instituído pela Lei nº 14.711/2023, apesar de seu título sugerir um enfoque exclusivo sobre o tema das garantias, não esgotou a matéria, limitando-se a disciplinar a alienação fiduciária e a hipoteca, abrangendo, simultaneamente, outros assuntos de relevo que extrapolam a temática específica das garantias reais.

2 Art. 1.476, Lei nº 10.406/2002 - O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor.

3 Aplicação subsidiária §1º do art. 9º da Lei nº 14.711/2023 c/c  art. 26, §§ 7º e 8º do art. 27, art.  30 e 37-A, todos da Lei nº 9.514/1997.

4 Não se aplica à hipoteca legal (art. 1.489, do Código Civil, hipoteca judicial (art. 495, do Código de Processo Civil, Lei nº 7.565/1986, inciso VII, do art. 1.473, do Código Civil, que tratam da hipoteca de aeronaves;  inciso VI, do art. 1.473, do Código Civil, Lei nº 2.256/1997 que se refere ao Decreto nº 2.256, de 17 de junho de 1997, que regulamenta o Registro Especial Brasileiro (REB) para embarcações, conforme estabelecido na Lei nº 9.432, de 8 de janeiro de 1997; e hipoteca relativa às estradas de ferro, vide inciso IV, do art. 1.473, do Código Civil, Decreto-Lei nº 9.760/1946 e Lei nº 11.483/2007).

5 Art. 1.487-A. A hipoteca poderá, por requerimento do proprietário, ser posteriormente estendida para garantir novas obrigações em favor do mesmo credor, mantidos o registro e a publicidade originais, mas respeitada, em relação à extensão, a prioridade de direitos contraditórios ingressos na matrícula do imóvel. (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023).

6 Lei nº 6.015/1973 - Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. II - a averbação: 37. da extensão da garantia real à nova operação de crédito, nas hipóteses autorizadas por lei.   (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023) 

7 Art. 1.477. Salvo o caso de insolvência do devedor, o credor da segunda hipoteca, embora vencida, não poderá executar o imóvel antes de vencida a primeira.

§ 2º O inadimplemento da obrigação garantida por hipoteca faculta ao credor declarar vencidas as demais obrigações de que for titular garantidas pelo mesmo imóvel.     (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023)

8 Art. 1.478. O credor hipotecário que efetuar o pagamento, a qualquer tempo, das dívidas garantidas pelas hipotecas anteriores sub-rogar-se-á nos seus direitos, sem prejuízo dos que lhe competirem contra o devedor comum.    (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023).

9 Lei nº 6.015/1973 - Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. II - a averbação; 30. da sub-rogação de dívida, da respectiva garantia fiduciária ou hipotecária e da alteração das condições contratuais, em nome do credor que venha a assumir essa condição nos termos do art. 31 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, ou do art. 347 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), realizada em ato único, a requerimento do interessado, instruído com documento comprobatório firmado pelo credor original e pelo mutuário, ressalvado o disposto no item 35 deste inciso;(Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022).

CC, Art.347. A sub-rogação é convencional:  I - quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos; II - quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito.

10 CC,Art. 1.428. É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento.

Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida.

11 Enunciado 626 do Conselho da Justiça Federal “Não afronta o art. 1.428 do Código Civil, em relações paritárias, o pacto marciano, cláusula contratual que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo (valor do bem em garantia que excede o da dívida).

Fernanda de Freitas Leitão
Tabeliã do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro.

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