Introdução
Em uma decisão inédita que reverbera por todo o sistema de justiça e proteção à infância, a 7ª vara do trabalho de São Paulo, vinculada ao TRT-2, proferiu, em agosto de 2025, uma liminar que estabelece um marco na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. A medida proíbe que conteúdos artísticos envolvendo o público infanto-juvenil sejam divulgados em plataformas de grande alcance, como Facebook e Instagram, sem a devida autorização judicial1. Tal deliberação, ao mesmo tempo em que reafirma a competência da Justiça do Trabalho para dirimir tais questões, lança luz sobre a complexa e multifacetada problemática do trabalho infantil artístico na era dos influenciadores digitais, bem como sobre a responsabilidade dos pais, das plataformas e da rede de proteção.
O presente artigo visa aprofundar a análise dessa importante decisão, explorando suas implicações jurídicas, as possíveis penalidades para os pais que expõem seus filhos de forma indevida, e a atuação, por vezes questionada, da rede de proteção, incluindo o Conselho Tutelar e o Ministério Público. A discussão se faz premente em um cenário de crescente digitalização da vida cotidiana, no qual a linha que separa a livre expressão artística da exploração do trabalho infantil se torna cada vez mais tênue, exigindo do ordenamento jurídico e de seus operadores uma atuação firme e atenta ao melhor interesse da criança e do adolescente.
O julgamento e suas implicações jurídicas
A decisão liminar da 7ª vara do trabalho de São Paulo, proferida em 27/8/25, atendeu a uma ação civil pública movida pelo MPT - Ministério Público do Trabalho e pelo Ministério Público de São Paulo. A ação visa coibir a exploração do trabalho infantil artístico nas plataformas da Meta (Facebook e Instagram), estabelecendo a obrigatoriedade de autorização judicial prévia para a veiculação de qualquer conteúdo dessa natureza. A multa diária estipulada em caso de descumprimento é de R$ 50 mil por criança ou adolescente em situação irregular, e os órgãos ministeriais pleiteiam, ainda, uma indenização de R$ 50 milhões por danos morais coletivos1.
A magistrada prolatora da decisão ressaltou os graves e imediatos riscos a que crianças e adolescentes são expostos quando inseridos nesse contexto de produção de conteúdo para fins de lucro, sem a devida salvaguarda judicial. Dentre os perigos elencados, destacam-se a pressão excessiva pela produção de conteúdo, com impactos deletérios à saúde física e mental; a exposição a ataques de ódio e ao cyberbullying, com consequentes danos à autoestima; o uso indevido e indiscriminado da imagem, que pode ser facilmente copiada e disseminada; os prejuízos à formação educacional, em virtude da dedicação precoce ao trabalho em detrimento dos estudos; e a privação de atividades lúdicas e sociais, essenciais ao desenvolvimento saudável na infância1.
Do ponto de vista jurídico, a decisão se ampara em um robusto arcabouço normativo, que vai desde a CF/88 até a legislação infraconstitucional e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil. O art. 7º, inciso XXXIII, da Carta Magna, veda expressamente o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e qualquer trabalho a menores de 16, salvo na condição de aprendiz. O ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 149, estabelece a competência da autoridade judiciária para disciplinar, por meio de portaria, ou autorizar, mediante alvará, a participação de crianças e adolescentes em espetáculos públicos e seus ensaios. A lei 6.533/78, que regulamenta a profissão de artista, e a Convenção 138 da OIT - Organização Internacional do Trabalho também são diplomas normativos que reforçam a necessidade de proteção e regulamentação do trabalho infantil artístico2.
Para a concessão de alvarás judiciais, são essenciais critérios como a verificação da conformidade do conteúdo, a vedação de publicidade infantil, a adequação do trabalho à idade do influenciador, a conformidade com a Convenção 138 da OIT (não prejudicar saúde/desenvolvimento, não afetar frequência escolar) e a previsão de medidas fiscalizatórias e punitivas. A responsabilidade pelas condições do trabalho infantil artístico é compartilhada entre as plataformas digitais, empresas anunciantes e pais/responsáveis legais2.
Penalidades para os pais e a atuação da rede de proteção
A exposição de crianças e adolescentes em plataformas digitais para fins de lucro, sem a devida autorização judicial, pode acarretar sérias consequências legais para os pais ou responsáveis. Embora a decisão do TRT-2 não detalhe penalidades diretas para os genitores, a legislação brasileira prevê diversas formas de responsabilização para aqueles que, por ação ou omissão, contribuem para a exploração ou violação dos direitos de crianças e adolescentes1.
A negligência, nesse contexto, é definida como a falha em cumprir o dever de cuidado e proteção que a lei impõe3. Juridicamente, a omissão negligente dos pais pode levar à responsabilização penal por omissão imprópria (crime comissivo por omissão), conforme o art. 13, § 2º, do CP. Nesse caso, o garantidor que tinha o dever e o poder de evitar um resultado danoso e não o faz, responde pelo próprio crime que deixou de impedir. Isso significa que, se comprovada a exploração ou o abuso, os pais podem ser responsabilizados pelo mesmo crime cometido contra a criança3.
Além disso, existem os crimes omissivos próprios, nos quais a própria lei descreve uma conduta de omissão como crime. Destacam-se o abandono de incapaz (Art. 133, CP), que ocorre quando há o desamparo físico de uma pessoa sob cuidado, guarda ou vigilância, expondo-a a perigo concreto; o abandono material (Art. 244, CP), caracterizado pela falta de provisão de subsistência do filho menor; e o descumprimento de deveres do poder familiar (Art. 249, ECA), que, embora seja uma infração administrativa, reflete a negligência e pode resultar em multa para o responsável3.
No que tange à atuação da rede de proteção, a decisão do TRT-2, impulsionada pelo Ministério Público do Trabalho e pelo Ministério Público de São Paulo, demonstra uma postura proativa e vigilante desses órgãos. Longe de indicar negligência, a ação civil pública e a liminar concedida evidenciam o empenho em coibir a exploração infantil no ambiente digital. O Ministério Público, em conjunto com o Conselho Tutelar e outras instituições, compõe o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, e sua atuação é fundamental para fiscalizar, denunciar e intervir em situações de violação de direitos. A crescente complexidade das relações digitais e a velocidade com que o conteúdo é disseminado, no entanto, impõem desafios contínuos a essa rede, exigindo constante aprimoramento e adaptação das estratégias de proteção 1-3.
Conclusão
A decisão liminar da Justiça do Trabalho da 2ª Região representa um avanço significativo na proteção da infância no ambiente digital. Ao exigir autorização judicial prévia para a divulgação de conteúdo artístico envolvendo crianças e adolescentes em plataformas como Facebook e Instagram, a Justiça reafirma o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, garantindo que sua participação no universo digital ocorra de forma segura e protegida, longe dos riscos da exploração e da superexposição. A medida serve como um alerta para pais, responsáveis e plataformas, reforçando a necessidade de observância rigorosa da legislação vigente e da atuação conjunta de toda a sociedade na defesa dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. É imperativo que a rede de proteção continue a se fortalecer e a se adaptar aos novos desafios impostos pelo ambiente digital, assegurando que a infância seja vivida em sua plenitude, com dignidade e segurança.
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1 G1. Justiça proíbe trabalho de crianças influencers no Instagram e no Facebook sem autorização judicial. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/08/27/justica-proibe-instagram-e-facebook-de-permitir-exploracao-de-trabalho-infantil-sob-pena-de-multa-de-r-50-mil-por-dia.ghtml. Acesso em: 29 ago. 2025.
2 Criança e Consumo. O trabalho infantil artístico nas redes sociais. Disponível em: https://criancaeconsumo.org.br/wp-content/uploads/2023/03/O-trabalho-infantil-artistico-nas-redes-sociais.pdf. Acesso em: 29 ago. 2025.
3 Migalhas. Negligência: Vídeo de Felca expõe violência esquecida pela sociedade. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-infancia-e-juventude/437025/negligencia-video-de-felca-expoe-violencia-esquecida-pela-sociedade. Acesso em: 29 ago. 2025.