Introdução
O fenômeno do superendividamento tem se intensificado no Brasil nos últimos anos, alcançando não apenas consumidores de baixa renda, mas também profissionais estáveis, incluindo servidores públicos. Essa realidade evidencia a necessidade de o Poder Judiciário, em consonância com a legislação consumerista, intervir para garantir a proteção da dignidade humana e o equilíbrio contratual, especialmente quando o devedor se encontra em situação de comprometimento excessivo de sua renda.
Recentemente, decisão proferida pela 1ª Vara Cível de Santos/SP trouxe à tona a aplicação prática do princípio do mínimo existencial, determinando a repactuação de dívidas de um servidor público com rendimentos consideráveis, mas cujo comprometimento financeiro inviabilizava o atendimento de suas necessidades básicas. O caso em questão reflete não apenas a aplicação do Direito, mas também a busca por soluções jurídicas que harmonizem os interesses do credor e do devedor em um contexto de crise financeira pessoal.
O caso concreto: Renda elevada e comprometimento exorbitante
O processo analisado envolveu um servidor público que recebia aproximadamente R$ 29.699,48 de rendimento bruto e R$ 23.168,36 líquidos mensais. Apesar dessa remuneração significativa, suas dívidas atingiam cerca de R$ 18.600,00 em parcelas mensais, o que representava quase 80% de sua renda líquida. Tal situação, à luz do Direito, configurava um claro caso de superendividamento, impossibilitando o cumprimento das obrigações financeiras sem afetar direitos fundamentais como moradia, saúde, alimentação e transporte.
O devedor buscou o Judiciário para solicitar autorização a fim de efetuar depósitos mensais em juízo no valor de R$ 8.108,92, equivalente a 35% de sua renda líquida. O objetivo era viabilizar um plano de pagamento razoável, compatível com sua realidade financeira e com a preservação do chamado mínimo existencial.
O magistrado, ao analisar o pedido, reconheceu a necessidade da repactuação das dívidas, permitindo a adequação das parcelas e a continuidade do pagamento sem que houvesse violação de direitos constitucionais do consumidor.
Fundamentação jurídica: O princípio do mínimo existencial
O mínimo existencial é um princípio implícito no ordenamento jurídico brasileiro, relacionado diretamente à proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal). Esse conceito traduz-se na garantia de que todo indivíduo deve dispor de recursos suficientes para prover suas necessidades básicas e de sua família, como saúde, alimentação, educação, moradia e transporte.
No âmbito consumerista, o CDC (lei 8.078/1990) estabelece, em seus arts. 4º e 6º, a proteção à vulnerabilidade do consumidor e a possibilidade de revisão contratual sempre que houver desproporção ou desequilíbrio que comprometa a subsistência do devedor. Além disso, a lei 14.181/21 (conhecida como “lei do superendividamento”) reforçou mecanismos de prevenção e tratamento da inadimplência excessiva, introduzindo medidas específicas para renegociação de dívidas com vistas à preservação do mínimo existencial.
Nesse contexto, a decisão proferida em Santos/SP encontra respaldo não apenas na legislação consumerista, mas também na jurisprudência que vem consolidando a tese de que o devedor não pode ser privado de recursos indispensáveis à sua sobrevivência, ainda que exista obrigação legítima de honrar compromissos financeiros.
A repactuação de dívidas como instrumento de Justiça Social
A repactuação judicial de dívidas configura-se como medida de equilíbrio, pois busca conciliar dois interesses igualmente relevantes:
- O direito do credor de receber o valor emprestado ou contratado;
- O direito do devedor de manter condições mínimas de subsistência, evitando sua exclusão social e financeira.
No caso analisado, o magistrado reconheceu que o parcelamento proposto pelo servidor era compatível com a realidade financeira apresentada, garantindo que parte significativa de sua renda fosse preservada para despesas básicas.
Além disso, a decisão reforça a importância de o Judiciário atuar não apenas como garantidor de direitos patrimoniais, mas também como guardião da dignidade humana. Tal posicionamento fortalece a compreensão de que o contrato deve cumprir sua função social (art. 421 do CC), sendo incompatível com situações que inviabilizem a sobrevivência digna do devedor.
Impactos e relevância para servidores públicos e consumidores
Embora o caso envolva um servidor público, a problemática atinge grande parcela da população brasileira, especialmente em tempos de crise econômica. O superendividamento não decorre apenas de má gestão financeira, mas muitas vezes de fatores externos, como juros abusivos, ofertas de crédito sem análise adequada da capacidade de pagamento e imprevistos que comprometem a estabilidade orçamentária do consumidor.
A decisão em análise serve de parâmetro para que consumidores, advogados e magistrados percebam a repactuação de dívidas como instrumento legítimo e necessário para assegurar equilíbrio financeiro e preservação de direitos fundamentais.
No âmbito prático, esse tipo de medida impede que servidores e trabalhadores em geral sejam submetidos à chamada “morte civil financeira”, na qual todo o orçamento é absorvido por dívidas, tornando inviável a manutenção da vida digna.
Conclusão
O caso do servidor público de Santos/SP ilustra de forma emblemática a importância da aplicação do princípio do mínimo existencial nas relações de consumo e no enfrentamento do superendividamento. Ao determinar a repactuação das dívidas, o Judiciário reafirma sua função de garantir o equilíbrio contratual, proteger a dignidade humana e assegurar que o devedor, mesmo em condição de inadimplência, não seja privado dos recursos necessários para viver com dignidade.
O mínimo existencial, portanto, revela-se não apenas como uma diretriz teórica, mas como instrumento prático de justiça social, que harmoniza os direitos do credor e do devedor no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.
A advocacia especializada em Direito do Consumidor desempenha papel crucial nesse cenário, atuando na elaboração de estratégias jurídicas, planos de repactuação e defesa técnica dos consumidores superendividados. Para servidores públicos e trabalhadores em geral, a correta aplicação desse princípio pode representar não apenas a regularização de suas finanças, mas também a preservação de sua qualidade de vida e de sua dignidade.