Introdução
A história jurídica e social do Brasil não pode ser contada sem a presença das organizações religiosas. Mais do que instituições voltadas ao culto, elas se tornaram espaços de cidadania, solidariedade e expressão comunitária da fé.
A Constituição de 1988, ao consagrar a liberdade religiosa como direito fundamental, e o CC/02, ao incluí-las expressamente como pessoas jurídicas de direito privado, reconheceram que essas entidades desempenham funções que ultrapassam a esfera espiritual.
No Brasil, país marcado por profundas desigualdades sociais, elas representam não apenas templos de devoção, mas verdadeiros pilares de assistência, educação, saúde e inclusão social.
Esse protagonismo, contudo, traz consigo uma exigência: compreender juridicamente as organizações religiosas em toda sua complexidade. Trata-se de conciliar sua autonomia estatutária, garantida pelo art. 44, IV, do CC, com os limites impostos pela Constituição, sobretudo no que toca à proteção de direitos fundamentais e ao princípio da laicidade estatal. O desafio é encontrar um equilíbrio entre liberdade plena de crença e responsabilidade plena em caso de abusos.
Fundamentos jurídicos
O reconhecimento jurídico das organizações religiosas é resultado de um processo histórico de evolução constitucional.
No período imperial, havia simbiose entre Igreja e Estado; na República, com a Constituição de 1891, consolidou-se a separação formal.
O CC de 1916, ao não prever categoria própria para igrejas, reduzia-as a simples associações civis. Somente com a CF/88 e, posteriormente, o CC/02, essas instituições receberam enquadramento jurídico adequado.
A Carta de 1988, em seu art. 5º, VI, garante a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos, assegurando ainda a proteção dos locais de culto e suas liturgias.
Esse dispositivo, ao lado do art. 19, I, que proíbe o Estado de estabelecer cultos ou embaraçar-lhes o funcionamento, delineia um modelo peculiar de laicidade: não hostil à religião, mas colaborativo. Daí surge a noção de “laicidade colaboracionista”, defendida por Luís Roberto Barroso, que admite diálogo institucional entre Estado e igrejas sem quebra da neutralidade estatal.
Panorama doutrinário
A doutrina contemporânea converge em reconhecer que as organizações religiosas são mais do que associações privadas.
José Afonso da Silva entende que a liberdade religiosa exige a dimensão institucional da fé, pois só assim ela se concretiza coletivamente.
Paulo Bonavides as enxerga como expressão da sociedade civil organizada, indispensáveis à cidadania participativa.
Comparato, por sua vez, alerta para os riscos de excessiva presença religiosa na vida pública, o que poderia corroer a neutralidade estatal.
O debate doutrinário revela, portanto, uma tensão entre reconhecimento e limitação, entre valorização social e necessidade de controles.
Contribuição social e econômica
No Brasil real, as organizações religiosas estão onde o Estado muitas vezes não chega. São responsáveis por hospitais, creches, escolas, orfanatos, comunidades terapêuticas, projetos de recuperação de dependentes químicos e inúmeras iniciativas de assistência social.
Relatórios do IPEA e dados do IBGE revelam que a maioria das entidades filantrópicas do país tem origem religiosa.
Não se trata, portanto, de um fenômeno a margem, mas estrutural: sem a atuação das igrejas, o sistema brasileiro de proteção social estaria incompleto.
O impacto econômico também é relevante.
Igrejas movimentam recursos expressivos, não apenas em atividades litúrgicas, mas também em empreendimentos editoriais, culturais e assistenciais.
Esse aspecto econômico, longe de deslegitimar sua missão, reforça sua presença enquanto agentes de transformação social.
Jurisprudência dos tribunais superiores
O STF tem adotado postura de equilíbrio. Reconhece a imunidade tributária dos templos de qualquer culto (art. 150, VI, b, CF), mas ressalva que ela não cobre atividades comerciais estranhas à fé.
O STF considerou compatível o ensino religioso facultativo em escolas públicas, reafirmando a laicidade colaborativa.
Em outro precedente relevante, reafirmou a autonomia das entidades religiosas para definir sua estrutura interna, limitando a interferência estatal.
O STJ, por sua vez, tem reiterado que matérias internas das igrejas configuram interna corporis, sendo vedada a ingerência judicial.
Contudo, quando direitos fundamentais são violados - por exemplo, em questões trabalhistas ou patrimoniais - o tribunal não hesita em intervir.
Responsabilidade e limites
A autonomia das organizações religiosas não é absoluta.
A Constituição protege a fé, mas não o abuso.
Casos de discriminação, exploração econômica de fiéis ou desvios de finalidade podem ensejar intervenção judicial e responsabilização civil.
A liberdade religiosa não é salvo-conduto para violar direitos humanos, mas instrumento de convivência pacífica em uma sociedade plural.
Impacto cultural e político
Além de seu papel social, as igrejas são guardiãs de tradições, símbolos e valores que compõem a identidade nacional.
Do catolicismo barroco às expressões neopentecostais, passando pelas comunidades evangélicas históricas e pelas religiões de matriz africana, as organizações religiosas são depositárias da diversidade cultural brasileira.
No campo político, sua presença é igualmente significativa. Embora haja riscos de instrumentalização da fé, é inegável que a atuação de organizações religiosas no debate público contribui para a formação de uma esfera civil ativa e plural.
Conclusão
As organizações religiosas são, no Brasil, mais que espaços de oração.
São colunas estruturantes da sociedade civil, verdadeiros agentes constitucionais.
O ordenamento jurídico lhes confere autonomia plena, mas também exige responsabilidade.
Seu papel não se esgota no campo espiritual: alcança a saúde, a educação, a cultura, a política e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.
Num país de desigualdades profundas, elas funcionam como faróis de esperança e cidadania.
Reconhecer juridicamente sua importância é reconhecer que o Direito não é inimigo da fé, mas aliado na construção de uma sociedade livre, plural e solidária.