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O papel das organizações religiosas na sociedade brasileira: Entre liberdade, autonomia e responsabilidade constitucional

As organizações religiosas no Brasil exercem papel social, jurídico e político essencial, conciliando fé, cidadania e responsabilidade constitucional.

2/9/2025

Introdução

A história jurídica e social do Brasil não pode ser contada sem a presença das organizações religiosas. Mais do que instituições voltadas ao culto, elas se tornaram espaços de cidadania, solidariedade e expressão comunitária da fé. 

A Constituição de 1988, ao consagrar a liberdade religiosa como direito fundamental, e o CC/02, ao incluí-las expressamente como pessoas jurídicas de direito privado, reconheceram que essas entidades desempenham funções que ultrapassam a esfera espiritual. 

No Brasil, país marcado por profundas desigualdades sociais, elas representam não apenas templos de devoção, mas verdadeiros pilares de assistência, educação, saúde e inclusão social.

Esse protagonismo, contudo, traz consigo uma exigência: compreender juridicamente as organizações religiosas em toda sua complexidade. Trata-se de conciliar sua autonomia estatutária, garantida pelo art. 44, IV, do CC, com os limites impostos pela Constituição, sobretudo no que toca à proteção de direitos fundamentais e ao princípio da laicidade estatal. O desafio é encontrar um equilíbrio entre liberdade plena de crença e responsabilidade plena em caso de abusos.

Fundamentos jurídicos

O reconhecimento jurídico das organizações religiosas é resultado de um processo histórico de evolução constitucional. 

No período imperial, havia simbiose entre Igreja e Estado; na República, com a Constituição de 1891, consolidou-se a separação formal. 

O CC de 1916, ao não prever categoria própria para igrejas, reduzia-as a simples associações civis. Somente com a CF/88 e, posteriormente, o CC/02, essas instituições receberam enquadramento jurídico adequado.

A Carta de 1988, em seu art. 5º, VI, garante a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos, assegurando ainda a proteção dos locais de culto e suas liturgias. 

Esse dispositivo, ao lado do art. 19, I, que proíbe o Estado de estabelecer cultos ou embaraçar-lhes o funcionamento, delineia um modelo peculiar de laicidade: não hostil à religião, mas colaborativo. Daí surge a noção de “laicidade colaboracionista”, defendida por Luís Roberto Barroso, que admite diálogo institucional entre Estado e igrejas sem quebra da neutralidade estatal.

Panorama doutrinário

A doutrina contemporânea converge em reconhecer que as organizações religiosas são mais do que associações privadas. 

José Afonso da Silva entende que a liberdade religiosa exige a dimensão institucional da fé, pois só assim ela se concretiza coletivamente. 

Paulo Bonavides as enxerga como expressão da sociedade civil organizada, indispensáveis à cidadania participativa. 

Comparato, por sua vez, alerta para os riscos de excessiva presença religiosa na vida pública, o que poderia corroer a neutralidade estatal. 

O debate doutrinário revela, portanto, uma tensão entre reconhecimento e limitação, entre valorização social e necessidade de controles.

Contribuição social e econômica

No Brasil real, as organizações religiosas estão onde o Estado muitas vezes não chega. São responsáveis por hospitais, creches, escolas, orfanatos, comunidades terapêuticas, projetos de recuperação de dependentes químicos e inúmeras iniciativas de assistência social. 

Relatórios do IPEA e dados do IBGE revelam que a maioria das entidades filantrópicas do país tem origem religiosa. 

Não se trata, portanto, de um fenômeno a margem, mas estrutural: sem a atuação das igrejas, o sistema brasileiro de proteção social estaria incompleto.

O impacto econômico também é relevante. 

Igrejas movimentam recursos expressivos, não apenas em atividades litúrgicas, mas também em empreendimentos editoriais, culturais e assistenciais. 

Esse aspecto econômico, longe de deslegitimar sua missão, reforça sua presença enquanto agentes de transformação social.

Jurisprudência dos tribunais superiores

O STF tem adotado postura de equilíbrio. Reconhece a imunidade tributária dos templos de qualquer culto (art. 150, VI, b, CF), mas ressalva que ela não cobre atividades comerciais estranhas à fé. 

O STF considerou compatível o ensino religioso facultativo em escolas públicas, reafirmando a laicidade colaborativa. 

Em outro precedente relevante, reafirmou a autonomia das entidades religiosas para definir sua estrutura interna, limitando a interferência estatal.

O STJ, por sua vez, tem reiterado que matérias internas das igrejas configuram interna corporis, sendo vedada a ingerência judicial. 

Contudo, quando direitos fundamentais são violados - por exemplo, em questões trabalhistas ou patrimoniais - o tribunal não hesita em intervir.

Responsabilidade e limites

A autonomia das organizações religiosas não é absoluta. 

A Constituição protege a fé, mas não o abuso. 

Casos de discriminação, exploração econômica de fiéis ou desvios de finalidade podem ensejar intervenção judicial e responsabilização civil. 

A liberdade religiosa não é salvo-conduto para violar direitos humanos, mas instrumento de convivência pacífica em uma sociedade plural.

Impacto cultural e político

Além de seu papel social, as igrejas são guardiãs de tradições, símbolos e valores que compõem a identidade nacional. 

Do catolicismo barroco às expressões neopentecostais, passando pelas comunidades evangélicas históricas e pelas religiões de matriz africana, as organizações religiosas são depositárias da diversidade cultural brasileira.

No campo político, sua presença é igualmente significativa. Embora haja riscos de instrumentalização da fé, é inegável que a atuação de organizações religiosas no debate público contribui para a formação de uma esfera civil ativa e plural.

Conclusão

As organizações religiosas são, no Brasil, mais que espaços de oração. 

São colunas estruturantes da sociedade civil, verdadeiros agentes constitucionais. 

O ordenamento jurídico lhes confere autonomia plena, mas também exige responsabilidade. 

Seu papel não se esgota no campo espiritual: alcança a saúde, a educação, a cultura, a política e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.

Num país de desigualdades profundas, elas funcionam como faróis de esperança e cidadania. 

Reconhecer juridicamente sua importância é reconhecer que o Direito não é inimigo da fé, mas aliado na construção de uma sociedade livre, plural e solidária.

Sóstenes Marchezine
Sócio-Diretor, Grupo Arnone e Arnone Advogados em Brasília. VP, Instituto Global ESG. Representante da OAB, CNODS/PR. Diretor, Comissão Carbono, CFOAB. Secretário, Frente ESG na Prática, Congresso.

Abner Ferreira
Advogado, jurista e bispo evangélico, líder da Assembleia de Deus - Ministério de Madureira. Com mais de 30 anos de destacada atuação em defesa da liberdade religiosa e dos direitos fundamentais, é Presidente da Comissão Especial de Juristas Evangélicos e Cristãos no Conselho Federal da OAB (CEJEC/CFOAB) e da União Internacional de Juristas Evangélicos e Cristãos (Unijur). É conferencista internacional, autor e coorganizador de obras jurídicas, entre elas o livro Direitos Humanos, Justiça Social e Liberdades Fundamentais, pela OAB Editora em homenagem ao ministro do STF André Mendonça.

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