Há setores que vivem em um pandemônio tributário aqui no Brasil, e até sobrevivem (com aquela dificuldade chamada “risco Brasil”).
O setor imobiliário, não. Por anos, esse setor esteve em uma espécie de oásis, uma biosfera projetada para prosperidade, chamada RET - Regime Especial de Tributação. A fórmula era (e ainda é) mágica: crie uma SPE - Sociedade de Propósito Específico para cada empreendimento, tribute a receita bruta com uma alíquota única de 4% (englobando IRPJ, CSLL, PIS e COFINS), e construa seu “sonho”.
Este modelo não é apenas uma vantagem; é o albergue sobre o qual todo o mercado de incorporação foi criado. Ele deu previsibilidade a um negócio de ciclo longo e permitiu a construção de milhões de lares e escritórios com um custo fiscal conhecido e controlado.
Agora, o IVA Dual (IBS e CBS) na reforma tributária chega com a promessa de simplicidade e uma alíquota de 27%. A conta, simplesmente, não fecha. A colisão entre esses dois mundos não será uma negociação amigável.
A pergunta é uma só: o jogo acabou?
IVA vs. RET
O choque acontece em dois momentos críticos, e ambos são potencialmente complicados (para dizer o mínimo) para o modelo atual.
1. Venda de imóvel: O problema dos 27% A questão mais preemente é:
A venda de um apartamento novo, hoje tributada a 4% pelo RET, passará a ser tributada pela alíquota cheia do IVA de 27%?
Se a resposta for "sim", o setor implodirá. Os preços teriam que subir dramaticamente, tornando o acesso à moradia ainda mais difícil, ou as margens dos incorporadores seriam pulverizadas, inviabilizando qualquer novo lançamento. O "sonho da casa própria" passaria a incluir um pesadelo tributário.
2. O limbo dos créditos: Os defensores do IVA dirão: "Calma, mas haverá crédito!". E aqui entramos em um mar de incertezas.
- Crédito sobre o terreno? A maior despesa de um empreendimento é, muitas vezes, o terreno. A compra de um terreno de uma pessoa física ou de outra empresa fora do regime do IVA gerará crédito? Como? A que valor? Sem uma resposta clara para isso, a principal vantagem da não cumulatividade se perde.
- Crédito sobre serviços: E os serviços de arquitetos, engenheiros, corretores? Se eles estiverem em um daqueles "regimes favorecidos" que discutimos no último artigo, o crédito gerado por eles será menor. O incorporador pagará o preço cheio, mas terá um crédito "capado", aumentando seu custo efetivo.
O que era um regime simples e direto (4% sobre a receita e ponto final) pode se tornar um pesadelo de apuração de créditos duvidosos sobre uma base de custos complexa. O bode está na sala!
A reação do mercado
O setor imobiliário, por sua própria natureza, tem rotas de fuga do sistema financeiro formal que são muito mais antigas e estabelecidas do que as criptomoedas. Se a carga tributária na venda formal de um imóvel novo se tornar proibitiva, veremos uma explosão de mecanismos de evasão e elisão que sempre existiram, mas que agora serão turbinados.
- Permuta: A troca de imóveis já é uma prática comum. "Eu te dou este terreno e você me dá 10 apartamentos prontos." Com o IVA a 27%, este mecanismo se tornará a regra, não a exceção. O objetivo será minimizar ao máximo o fluxo de "dinheiro" (receita) que serve de gatilho para o imposto. A economia voltará a ser real, baseada na troca de ativos físicos, com contratos complexos de permuta substituindo as simples notas fiscais de venda.
- Mercado secundário: Por que comprar um imóvel novo e pagar 27% de imposto embutido no preço, se posso comprar um "seminovo" de uma pessoa física, pagando apenas o ITBI na transmissão? A demanda pode migrar massivamente para o mercado secundário, deprimindo o setor de lançamentos.
- Reformas e vendas informais: Veremos uma explosão de "investidores" que compram imóveis antigos, fazem reformas pagando tudo "por fora" (sem nota fiscal nos materiais e serviços) e revendem como pessoa física, apurando um ganho de capital muito menor. Será a institucionalização da informalidade como modelo de negócio.
Conclusão: A crise de identidade de um setor
O setor imobiliário está na balança, enfrentando uma crise de identidade. Seu modelo de sucesso, baseado na simplicidade e eficiência do RET, está sob ataque frontal. A transição para o universo do IVA não é uma simples troca de alíquotas; é uma colisão com o alicerce do negócio.
Para os líderes do setor, é hora de pensar:
- Lobby: As associações do setor (Secovi, SindusCon) precisam ir a Brasília com mais do que discursos. Precisam de simulações, estudos de impacto e uma proposta concreta para um regime de transição ou um tratamento diferenciado dentro do IVA que seja inteligente e viável.
- Modelagem de negócios: É preciso começar a desenhar, agora, como seria uma incorporadora operando no pior cenário (IVA a 27% e créditos limitados). Quais projetos ainda seriam viáveis? O foco mudaria para aluguel (que terá outra tributação)? Para nichos de altíssimo luxo?
- Inovação contratual: Os advogados do setor têm uma tarefa hercúlea: redesenhar os contratos de permuta, as cláusulas de compra e venda e as estruturas societárias para navegar neste novo mar revolto.
O setor que construiu o Brasil como o conhecemos precisa decidir se lutará para salvar seu lugar ou se aprenderá a construir no novo terreno que se anuncia. Ficar parado é garantir que a reforma passe por cima.