Na segunda metade dos anos 2000 (especificamente em 2006 e 2007 - portanto, antes da crise do subprime em 2008), o mercado de capitais brasileiro viveu seus ‘anos dourados’, um momento ímpar de crescimento e consolidação que, desde então, não voltou a se repetir.
Naquela época, além do mercado de dívida, também o mercado de equity vivia um momento de exuberância, com dezenas de IPOs lançados - ao todo, tivemos 26 IPOs em 2006 e o impressionante número de 64 IPOs em 2007 (segundo levantamento da Quantum Finance).
Esse ciclo virtuoso foi impulsionado por fatores econômicos e regulatórios, incluindo a maior participação de investidores estrangeiros, o crescimento do crédito e o amadurecimento das práticas de governança corporativa.
A reboque desse movimento, a discussão sobre poison pills passou a habitar assembleias, estatutos sociais e as páginas da Gazeta Mercantil, então ainda em circulação, e do Valor Econômico, os dois principais jornais empresariais do país. A partir de sua inserção no estatuto social da Natura, em 2004, o dispositivo ganhou tração.
Contudo, a “tropicalização” das poison pills trouxe um deslocamento: um mecanismo concebido para capital pulverizado (antídoto a aquisições hostis em mercados dispersos) teve, no Brasil, que operar num ecossistema de controle concentrado.
Ao leitor não tão familiarizado com esse instrumento, é chegado o momento de responder à questão: afinal, o que são poison pills?
No Direito Societário norte-americano, as poison pills assumem a forma de shareholder rights plans: planos que concedem direitos a todos os acionistas, mas que permanecem dormentes até que determinado patamar de participação seja alcançado.
Se o gatilho é cruzado, entra em cena o chamado flip-in: os demais acionistas, exceto o proponente, podem comprar ações da própria companhia com desconto, diluindo a posição do pretendente e encarecendo sua investida.
Algumas estruturas preveem ainda um flip-over: após a conclusão da operação societária, esses direitos se convertem na possibilidade de adquirir ações do próprio adquirente em condições vantajosas.
A lógica econômica é inequívoca: desestimular o creeping takeover - a aquisição gradual de poder de voto sem pagamento de prêmio de controle - e forçar que eventuais ofertas ocorram de forma transparente e em bases abertas.
No Brasil, por uso e convenção, “poison pill” passou a designar a cláusula estatutária de OPA - oferta pública de aquisição obrigatória (de natureza contratual) que impõe ao investidor, ao ultrapassar determinado patamar de participação acionária, o dever de lançar oferta pública de aquisição a todos os acionistas, em geral com prêmio sobre a cotação de referência. A arquitetura jurídica é distinta da americana, mas a função econômica dialoga: coibir a concentração oportunista e equalizar tratamento.
Aqui cabe um parêntese. O nosso direito empresarial volta e meia importa conceitos da prática norte-americana (SPACs, sandbagging…) que viram “moda” e, por vezes, sofrem aplicações deslocadas do nosso contexto institucional. Com as poison pills foi assim: no modelo de controle concentrado, ganharam espaço arranjos voltados menos à dispersão acionária e mais à autodefesa do controlador, com o agravante de tentativas de petrificação estatutária.
Para conter esse desvio, a CVM publicou o Parecer de Orientação nº 36/2009. O documento reconheceu a prática de “cláusulas pétreas” associadas às poison pills - disposições acessórias que impunham ônus aos acionistas que votassem pela supressão/alteração da cláusula (como a obrigação de realizar a oferta pública ali prevista) - e afirmou sua incompatibilidade com princípios e normas da lei das S.A. O recado do regulador foi bastante claro: poison pills não estão proibidas; abusos destinados à perpetuação do controlador no poder, sim.
A imagem do phármakon ajuda: remédio em certas doses, veneno em outras. Em estruturas de controle consolidadas, quando “petrificada” ou com prêmios desproporcionais, a poison pill converte-se em barreira: resseca liquidez, encarece o capital e bloqueia reorganizações com racionalidade econômica. A diferença entre proteção e entrave está na calibragem: gatilho, prêmio, duração e salvaguardas.
Do lado da B3, o Novo Mercado caminhou na mesma direção: reforçou a dispersão acionária e liquidez e vedou cláusulas estatutárias de caráter “pétreo” - aquelas que pretendem blindar a própria alteração. Também consolidou uma exigência mais robusta de ações em circulação: regra geral de 20% de free float, com trilhos de transição e hipóteses específicas que admitem 15% por período determinado, condicionadas a contrapartidas de liquidez e governança. Em conjunto, são medidas que desincentivam a concentração excessiva e favorecem um mercado mais profundo e negociável.
O exemplo do Takeover Panel (autorregulação com força normativa), do Reino Unido, auxilia nessa calibragem ao impor, ao adquirente que ultrapasse o patamar de 30% dos direitos de voto, o dever de lançar oferta obrigatória a todos os acionistas, pelo melhor preço dos 12 meses anteriores. O Brasil ensaiou uma via análoga de autorregulação com o CAF - Comitê de Aquisições e Fusões, mas a iniciativa não ganhou escala e foi descontinuada em 2021.
No noticiário recente, o tema voltou à pauta: menções a companhias como Oncoclínicas, GetNinjas e Hapvida, entre outras, recolocaram as poison pills no centro das assembleias e das colunas especializadas, cada qual em seu contexto. Sem juízo sobre o mérito de cada desenho, interessa aqui o pêndulo entre proteção societária legítima e configurações que, a depender da calibragem, podem produzir efeitos restritivos.
Vale uma nota lateral: o mecanismo não é exclusividade de companhias abertas. Fundos de investimento já começam a adotar cláusulas análogas - no caso do SHPH11 - FII Shopping Pátio Higienópolis, aprovado em 2025, o regulamento passou a prever poison pill com gatilho de 20% das cotas e obrigação de OPA a todos os cotistas. Além disso, cotistas que detenham participação acima desse patamar têm o direito de voto limitado a 15% em deliberações sensíveis. Trata-se de uma transposição pioneira do instituto para o universo dos FIIs, que merece acompanhamento de perto.
Em síntese: poison pills têm lugar como defesa contra aquisições oportunistas e para assegurar tratamento equitativo; não para blindar controladores.
Num mercado de controle concentrado, o que se exige é calibragem técnica: gatilhos, prêmios e prazos proporcionais, com justificativa econômica.