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A violação do princípio da irretroatividade da lei penal - Parte 2

A aplicação retroativa da tese 1.068 fixada pelo STF viola frontalmente o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa, consagrado no art. 5º, inciso XL.

5/9/2025

Na primeira parte do nosso artigo, exploramos o contexto e a decisão relacionada ao Tema 1.068 do STF, destacando os antecedentes históricos, como o RE 1.235.340. Discutimos a crescente instabilidade jurisprudencial que ameaça um dos pilares fundamentais do Estado de Direito, além de abordar a confirmação definitiva da aplicação retroativa da lei penal.

Nesta segunda parte, iremos aprofundar a análise do princípio constitucional da irretroatividade da lei penal e sua abrangência. Faremos uma reflexão sobre os posicionamentos históricos dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, cujas visões contrastantes - um juiz garantista e outro punitivista - oferecem um panorama rico e complexo sobre a interpretação e a aplicação desse princípio no direito penal brasileiro. Essa análise será fundamental para compreendermos as tensões e os desafios que permeiam a aplicação da lei penal em nosso sistema jurídico.

3 - O princípio constitucional da irretroatividade da lei penal

O princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa constitui uma das garantias fundamentais mais importantes do sistema jurídico brasileiro, encontrando expressa previsão no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal Brasileira, que estabelece: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"9.

Esta garantia constitucional não é uma criação original do constituinte de 1988, mas representa a consolidação de uma tradição jurídica que remonta às primeiras declarações de direitos e que encontra suas raízes nos princípios fundamentais do Estado de Direito. A vedação à retroatividade da lei penal mais gravosa visa proteger o cidadão contra o arbítrio do Estado,garantindo que ninguém seja punido com base em normas que não existiam ou não eram aplicáveis no momento da prática do fato. O fundamento filosófico deste princípio reside na necessidade de preservar a segurança jurídica e a confiança legítima dos cidadãos no ordenamento jurídico. Como bem observa a doutrina constitucional"a irretroatividade da lei penal mais gravosa constitui uma garantia individual contra o arbítrio do poder público, assegurando que as pessoas possam orientar sua conduta com base nas normas vigentes no momento de sua ação" 10.

3.1 - Abrangência do princípio

Uma questão fundamental para a análise do Tema 1.068 refere-se à abrangência do princípio da irretroatividade. Tradicionalmente, parte da doutrina sustentava que este princípio se aplicaria apenas às normas penais materiais, não alcançando as normas processuais penais, que teriam aplicação imediata por força do art. 2º do CPP11. Contudo, esta distinção clássica entre normas penais e processuais penais tem sido objeto de crescente crítica na doutrina contemporânea, especialmente quando se trata de normas processuais que impactam substancialmente os direitos fundamentais do acusado. Como observam Fernando Cesar de Oliveira Faria e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira, "o sistema penal não pode ser fragmentado a ponto de dissociar as consequências processuais de uma norma dos seus efeitos sobre o direito de punir e a liberdade do indivíduo" 12.

No caso específico da execução imediata da pena, é impossível sustentar que se trata de mera questão processual. A antecipação da execução da pena afeta diretamente o direito fundamental à liberdade e à presunção de inocência, configurando uma alteração substancial no regime jurídico aplicável ao réu. Portanto, qualquer mudança jurisprudencial que torne mais gravosa a situação do acusado deve observar o princípio da irretroatividade

3.2 - Jurisprudência e precedentes vinculantes

A questão da aplicação do princípio da irretroatividade aos precedentes vinculantes e às mudanças jurisprudenciais tem ganhado especial relevância no sistema jurídico brasileiro, especialmente após a entrada em vigor do CPC de 2015, que fortaleceu o sistema de precedentes13.

O próprio STF já reconheceu, em diversas oportunidades, que mudanças jurisprudenciais desfavoráveis ao réu devem observar o princípio da irretroatividade. Um exemplo paradigmático é o julgamento do Tema 788, em que a Corte definiu o termo inicial para a contagem da prescrição da pretensão executória do Estado, modulando expressamente os efeitos da decisão para que fosse aplicada apenas prospectivamente14.

Esta modulação de efeitos demonstra que o próprio STF reconhece a necessidade de proteger a segurança jurídica quando há mudanças significativas de entendimento. A ausência de modulação no Tema 1.068 representa, portanto, uma contradição com a própria jurisprudência da Corte e uma violação dos princípios que ela mesma já reconheceu como fundamentais.        

4 - Os posicionamentos históricos dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes sobre irretroatividade

4.1 A doutrina do ministro Gilmar Mendes

O ministro Gilmar Ferreira Mendes, ao longo de sua extensa carreira acadêmica e jurisprudencial, sempre se destacou como um defensor intransigente dos princípios constitucionais fundamentais, especialmente aqueles relacionados à segurança jurídica e à proteção dos direitos adquiridos. Suas obras doutrinárias constituem referência obrigatória no estudo do Direito Constitucional brasileiro e demonstram uma coerência teórica que torna ainda mais surpreendente sua mudança de posicionamento no Tema 1.068.

Em seu artigo seminal "Anotações sobre o Princípio do Direito Adquirido Tendo em Vista a Aplicação do Novo Código Civil", publicado na Revista Direito Público em 2003, o ministro Gilmar Mendes estabelece com clareza meridiana que "a vedação da retroatividade é de cunho constitucional"15.

Esta afirmação, constante da página 26 do referido trabalho, não deixa margem para dúvidas sobre a importância que o ministro atribuía ao princípio da irretroatividade como garantia fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. No mesmo trabalho, Gilmar Mendes desenvolve uma argumentação sofisticada sobre a necessidade de proteção contra a aplicação retroativa de normas em prejuízo do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Segundo o ministro, esta proteção não se limita às normas escritas, mas deve alcançar também as mudanças jurisprudenciais que alterem substancialmente o regime jurídico aplicável aos jurisdicionados16.

A coerência do pensamento de Gilmar Mendes sobre esta matéria pode ser observada em diversas outras obras e decisões. Em seu "Curso de Direito Constitucional", escrito em coautoria com Paulo Gustavo Gonet Branco, o ministro reafirma que "o princípio da irretroatividade constitui uma das garantias fundamentais mais importantes do Estado de Direito, protegendo os cidadãos contra alterações arbitrárias das regras jurídicas"17.

Particularmente relevante para a análise do Tema 1.068 é a posição de Gilmar Mendes sobre a aplicação do princípio da irretroatividade às mudanças jurisprudenciais. Em diversos julgados, o ministro defendeu que alterações significativas de entendimento pelos tribunais superiores devem observar o princípio da segurança jurídica, especialmente quando tais mudanças prejudicam direitos ou expectativas legítimas dos jurisdicionados.18

4.2 A doutrina do ministro Alexandre de Moraes

O ministro Alexandre de Moraes, antes de sua nomeação para o STF, já havia consolidado uma sólida reputação acadêmica como constitucionalista, sendo autor de uma das obras de Direito Constitucional mais utilizadas no país. Sua obra "Direito Constitucional", atualmente em sua 37ª edição, constitui referência obrigatória para estudantes e profissionais do Direito19.

Em sua obra principal, Alexandre de Moraes dedica especial atenção ao princípio da irretroatividade, classificando-o como uma das garantias fundamentais mais importantes do sistema constitucional brasileiro. O autor enfatiza que "o princípio da irretroatividade da lei tributária" e, por extensão, de todas as normas sancionatórias, constitui uma proteção essencial contra o arbítrio do poder público20.

A posição de Alexandre de Moraes sobre a irretroatividade ganhou especial relevância em seu voto no ARE 843.989, proferido em 2022, onde o ministro afirmou categoricamente: "Em regra, a lei não deve retroagir, pois 'não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada', inclusive no campo penal" 21.

Esta declaração, feita apenas dois anos antes do julgamento do Tema 1.068, demonstra a clareza de seu posicionamento sobre a matéria.

Ainda mais significativo é o posicionamento de Alexandre de Moraes no julgamento da lei de improbidade administrativa em 2022, quando votou expressamente pela irretroatividade das disposições mais benéficas aos acusados. Em seu voto, o ministro argumentou que "a natureza sancionatória da lei de improbidade exige observância rigorosa do princípio da irretroatividade, não podendo haver aplicação retroativa de normas que alterem o regime jurídico aplicável aos investigados" 22.

4.3 A contradição evidente

A análise comparativa entre os posicionamentos históricos dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes sobre irretroatividade e suas decisões no Tema 1.068 revela uma contradição evidente e preocupante. Ambos os ministros, que durante décadas defenderam com veemência o princípio da irretroatividade como garantia fundamental, mudaram radicalmente de posicionamento quando se tratou de aplicar este mesmo princípio ao caso concreto do Tribunal do Júri.

Esta mudança não pode ser explicada por uma evolução natural do pensamento jurídico ou por novas circunstâncias fáticas. Pelo contrário, os fundamentos constitucionais que sempre nortearam os posicionamentos destes ministros permanecem inalterados. O art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal continua estabelecendo que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu", e os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima mantêm sua força normativa23.

A contradição torna-se ainda mais evidente quando se considera que, no caso da lei de improbidade administrativa, o ministro Alexandre de Moraes defendeu a irretroatividade mesmo quando se tratava de normas mais benéficas aos acusados. No Tema 1.068, contudo, o mesmo ministro votou pela aplicação retroativa de uma mudança jurisprudencial claramente prejudicial aos réus, sem qualquer justificativa convincente para esta diferença de tratamento.

Na próxima semana, abordaremos a questão da impossibilidade constitucional da aplicação retroativa do Tema 1.068, enfatizando a rejeição categórica da modulação dos efeitos e a urgente necessidade de uma correção de rumo. Essa discussão é crucial para compreendermos as implicações jurídicas e sociais que envolvem essa temática, bem como para refletirmos sobre a adequação das práticas atuais em relação aos direitos fundamentais e à segurança jurídica.

_______

Referências

9 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, XL.

10 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

11 BRASIL. Código de Processo Penal. Art. 2º.

12 FARIA, Fernando Cesar de Oliveira; OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. A distinção entre normas penais e processuais penais. Revista de Direito Penal, 2023.

13 BRASIL. Código de Processo Civil de 2015. Art. 927.

14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 788. Modulação de efeitos.

15 MENDES, Gilmar Ferreira. Anotações sobre o Princípio do Direito Adquirido Tendo em Vista a Aplicação do Novo Código Civil. Revista Direito Público, n. 1, 2003, p. 26.

16 MENDES, Gilmar Ferreira. Anotações sobre o Princípio do Direito Adquirido Tendo em Vista a Aplicação do Novo Código Civil. Revista Direito Público, n. 1, 2003.

17 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Diversos julgados do Min. Gilmar Mendes sobre segurança jurídica.

19 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 37ª ed. São Paulo: Atlas, 2021.

20 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 995.

21 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 843989. Voto do Min. Alexandre de Moraes, 2022.

22 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1199. Voto do Min. Alexandre de Moraes sobre Lei de Improbidade, 2022.

23 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, XL.

Daniel Charliton Rodrigues
Advogado especializado em Direito Penal, Ambiental, Cível e Empresarial. Com experiência em gestão pública, foi superintendente do IBAMA, gestor em Itaguaí/RJ, São João de Meriti/RJ

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