A malha rodoviária, quando estruturada sob padrões adequados de pavimentação e sinalização, revela-se componente decisivo para o escoamento da produção, circulação de pessoas/bens, e para a prestação de serviços de forma eficiente e segura. Trata-se, portanto, de infraestrutura essencial à vida econômica e social do país, cuja manutenção e expansão encontram no modelo de concessão a principal via de sustentação.
De um lado, evidencia-se a limitação estrutural do Poder Público em conservar e modernizar todo o seu sistema viário; de outro, surgem empresas privadas dispostas a investir recursos vultosos para garantir a continuidade e qualidade desse serviço público, mediante a contraprestação tarifária - o chamado “pedágio” - paga diretamente pelos usuários.
À primeira vista, pode parecer uma equação simples: o Estado transfere a gestão de ativos e serviços à iniciativa privada, que, em contrapartida, recebe remuneração pela boa administração e manutenção da malha rodoviária. A realidade, contudo, revela uma operação complexa, permeada por múltiplas interfaces contratuais, regulatórias, jurídicas e sociais, que exigem contínua coordenação entre agentes públicos, concessionárias, órgãos de controle e a sociedade civil.
Entre os desafios mais recorrentes ao longo dos anos destaca-se a pressão - ora por iniciativas legislativas, ora por demandas judiciais - para afastar ou mitigar a cobrança da tarifa de pedágio a determinados grupos de usuários. As justificativas variam desde a invocação de critérios de cunho social até o argumento de que moradores do entorno das praças não deveriam arcar com o pagamento, o que tensiona a sustentabilidade econômico-financeira das concessões e a universalidade do serviço público.
Embora revestidas de sensibilidade social, essas demandas precisam ser analisadas com o devido rigor jurídico, sob pena de comprometer a viabilidade do sistema concessional e os interesses da coletividade. Afinal, a tarifa não é um simples encargo, pois constitui a principal ferramenta de viabilização do modelo concessional, garantindo aportes financeiros, manutenção adequada das vias, segurança viária e atendimento ao usuário, sem descurar da modicidade.
O CC, em seu art. 103, e a CF/88, em seu art. 150, V, consagram expressamente a legitimidade da cobrança de pedágio em vias conservadas pelo Poder Público, desde que respeitados os princípios da legalidade, da igualdade e da modicidade. Trata-se, portanto, de um mecanismo que não apenas remunera a concessionária, mas sobretudo garante a continuidade e a qualidade de um serviço público essencial.
Por essa razão, a dispensa do pagamento da tarifa deve constituir exceção, e não regra, sendo condicionada à existência de previsão legal ou contratual expressa, acompanhada de fonte de custeio apta a salvaguardar o equilíbrio econômico-financeiro do pacto e, via de consequência, a modicidade.
A par de tais premissas, o STF reconheceu a ilegalidade de normas que concedem isenções de pedágio sem observar tais pressupostos legais. No julgamento do ARE 1.349.285/RJ1, a Corte considerou inconstitucional a lei estadual 8.170/18 do Rio de Janeiro, que beneficiava com isenção tarifária residentes ou trabalhadores dos municípios onde situavam-se as praças.
A norma foi invalidada por violar diversos princípios constitucionais, como a isonomia, a separação dos poderes, a autonomia municipal e, especialmente, o equilíbrio econômico-financeiro dos ajustes contratuais.
Como destacou o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, a criação de privilégios tarifários para determinados grupos de usuários interfere indevidamente nas condições originalmente pactuadas entre o poder concedente e as concessionárias, sem apresentar qualquer fonte de compensação.
Além de gerar uma discriminação inaceitável entre os cidadãos, vedada pelo art. 19, III, da CF/88, essa prática impõe um ônus indevido aos demais usuários, que acabam arcando com os custos redistribuídos de forma desigual.
Esse entendimento reforça a tese de que não cabe ao Judiciário ou ao Legislativo criar, por iniciativa própria, regimes de exceção que afetem a estrutura tarifária das concessões, sob pena de romper os fundamentos que garantem sua estabilidade, como a legalidade, a previsibilidade e a segurança jurídica.
O mesmo se aplica às tentativas de isenção baseadas na inexistência de vias alternativas, argumento igualmente afastado pelo STF na ADIn 800/RS2, relatada pelo ministro Teori Zavascki, ao considerar que a cobrança de pedágio não depende da existência de rota paralela gratuita, desde que a via esteja em condições adequadas de uso.
É preciso lembrar que a tarifa de pedágio, além de representar um custo de uso - como tantos outros inerentes à propriedade de veículos -, é fundamental para sustentar os aportes que garantem sinalização, serviços de atendimento ao usuário e conservação da malha viária.
Benefícios concedidos fora dos parâmetros legais ou contratuais, por mais bem-intencionados que sejam, comprometem a modicidade tarifária, desequilibram contratos e colocam em risco a universalidade e a qualidade do serviço.
Não por acaso, muitas concessionárias que, em fases iniciais do modelo, chegaram a adotar regimes de isenção como uma liberalidade - muitas vezes para suavizar a aceitação local do pedágio - hoje têm revisitado essas práticas.
A experiência demonstrou que, embora compreensíveis em seu contexto histórico, tais medidas comprometem a sustentabilidade de longo prazo dos contratos e podem gerar distorções irreparáveis na matriz econômico-financeira.
Esse movimento de revisão evidencia uma lição importante: a gestão de concessões exige não apenas sensibilidade social, mas também respeito às balizas contratuais e constitucionais. É justamente essa disciplina que garante que o modelo continue a atrair investimentos privados, ampliar a rede de infraestrutura e oferecer serviços de qualidade à população.
Portanto, qualquer discussão sobre isenção de pedágio deve ser travada dentro dos limites do contrato e das normas que regem a concessão. Ignorar esses parâmetros significa corroer os alicerces de um modelo que foi pensado justamente para garantir eficiência, continuidade e justiça no acesso à infraestrutura pública.
Para concessionárias e poder concedente, o desafio está em equilibrar demandas locais legítimas com a necessidade de preservar o interesse coletivo. É um exercício permanente de técnica, diálogo e segurança jurídica, que, cada vez mais, revela-se determinante para a solidez do setor.
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1 AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADI ESTADUAL. LEI 8.170/2018 DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, QUE ESTABELECE NORMAS DE ISENÇÃO DO PAGAMENTO DE PEDÁGIO NO RESPECTIVO TERRITÓRIO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. LEI ESTADUAL QUE INTERFERE NO EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATOS FIRMADOS ENTRE O PODER EXECUTIVO E AS EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS. VIOLAÇÃO AO ART. 37, XXI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E À SEPARAÇÃO DOS PODERES. LEI QUE NÃO INDICA FONTE DE CUSTEIO. INOBSERVÂNCIA DO ART. 112, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. DESRESPEITO À AUTONOMIA MUNICIPAL (ART. 18 DA CF). 1. O Tribunal de origem declarou a inconstitucionalidade da Lei Estadual 8.170/2018, oriunda de projeto de lei de iniciativa do Poder Legislativo, que concede isenção do pagamento de tarifa de pedágio em rodovia estadual, quer esteja sendo administrada pela iniciativa privada via contrato de concessão, quer pelo próprio Poder Público Estadual ou Municipal, a veículo cujo proprietário possua residência permanente ou exerça atividade profissional permanente no próprio Município em que esteja localizada a praça de cobrança de pedágio. 2. Ao impor situação mais vantajosa para os proprietários de veículos residentes ou que trabalhem em município que abrigam praças de pedágio, a norma questionada viola o princípio da isonomia inserto no art. 19, III, da Constituição Federal, que dispõe ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. 3. A jurisprudência da CORTE firmou-se no sentido de inibir que sejam estabelecidas pelos entes da federação brasileira relações de preferências entre brasileiros, em razão de sua origem ou procedência (ADI 4382, de minha relatoria,Tribunal Pleno, DJe de 30/10/2018; (ADI 3.583, Rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, DJe de 14/3/2008; (RE 668.810, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, DJe de 10/8/2017 ). 4. A lei estadual impugnada imiscui-se indevidamente nas estipulações contratuais estabelecidas entre o Poder Executivo concedente e as empresas concessionárias, com ferimento ao disposto no art. 37, XXI, da Constituição Federal, e ao princípio da separação de poderes. 5. O Tribunal de origem pontuou que a lei contestada não indica a fonte de custeio para o poder concedente arcar com os encargos da desoneração prevista na norma, o que finda por violar o art. 112, § 2º, da Constituição Estadual, cuja constitucionalidade já foi reconhecida pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADI 3225, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, DJe de 26/10/2007). 6. Esta CORTE firmou entendimento de que os Estados-membros não podem interferir na esfera das relações jurídico-contratuais estabelecidas entre o poder concedente, seja a União Federal, seja o Município, e as empresas concessionárias, nem modificar ou alterar as condições dos contratos de concessão. 7. Na hipótese vertente, a norma abrange contrato de concessão de rodovia estadual sob a administração do Município, o que afronta a autonomia municipal (art. 18, da CF). 8. Agravo Interno a que se nega provimento. (STF - ARE: 1349285 RJ 0078337-37.2019.8.19 .0000, Relator.: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 10/11/2021, Data de Publicação: 18/11/2021)
2 TRIBUTÁRIO E CONSTITUCIONAL. PEDÁGIO. NATUREZA JURÍDICA DE PREÇO PÚBLICO. DECRETO 34.417/92, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CONSTITUCIONALIDADE. 1. O pedágio cobrado pela efetiva utilização de rodovias conservadas pelo Poder Público, cuja cobrança está autorizada pelo inciso V, parte final, do art. 150 da Constituição de 1988, não tem natureza jurídica de taxa, mas sim de preço público, não estando a sua instituição, consequentemente, sujeita ao princípio da legalidade estrita. 2. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (STF - ADI: 800 / RS - RIO GRANDE DO SUL, Relator.: TEORI ZAVASCKI, Data de Julgamento: 11/06/2014, Data de Publicação: 01/07/2014)