A proposta de reforma administrativa que tramita no Congresso Nacional recoloca em debate o papel das instituições que dão corpo ao Estado brasileiro. A discussão não pode se limitar a aspectos meramente fiscais ou de redução de custos, sob pena de comprometer a efetividade das políticas públicas e a própria capacidade do Estado de entregar direitos fundamentais à população. É necessário avaliar a reforma sob a ótica da governança, da segurança jurídica e da preservação do pacto federativo.
E, na perspectiva do pacto federativo, é preciso pensar no âmbito dos municípios, pois é justamente na cidade que se revelam os dramas, as demandas e as complexidades mais imediatas da vida social. É no município que os direitos fundamentais da população se concretizam de forma primária e direta.
A CF/88, ao tratar da organização político-administrativa do Estado, estabeleceu que a República Federativa do Brasil “compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” (art. 18). A Federação, nesse desenho, busca conciliar unidade nacional e diversidade regional, garantindo aos entes uma esfera própria de autonomia político-administrativa.
Esse arranjo fortalece a democracia, pois não apenas preserva diferenças culturais, econômicas e regionais, como também distribui poder de forma horizontal, evitando a centralização e assegurando maior liberdade institucional.
No caso dos municípios, a CF/88 lhes atribui personalidade jurídico-constitucional, com poderes de autogoverno, auto-organização e autoadministração. Trata-se de reconhecimento expresso de sua condição federativa, que legitima sua autonomia e projeta sua relevância na estrutura democrática do Estado brasileiro.
Nesse cenário, a advocacia pública municipal se destaca como função essencial à Justiça e pilar da gestão pública responsável. Sua atuação garante que as escolhas políticas feitas pelo gestor eleito sejam implementadas com juridicidade, eficiência e respeito à Constituição, evitando retrocessos institucionais e assegurando que os direitos fundamentais se concretizem no espaço da cidade.
O STF reconheceu a advocacia pública municipal como uma função essencial à Justiça. No julgamento do RE 663.696/MG, submetido à sistemática da repercussão geral (Tese 510), fixou-se: “Os procuradores municipais integram a categoria da Advocacia Pública inserida pela Constituição da República dentre as cognominadas funções essenciais à Justiça, na medida em que também atuam para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito.”
No voto condutor, o ministro relator Luiz Fux destacou: “É imperativo que todas as disposições pertinentes à Advocacia Pública sejam aplicadas às Procuradorias Municipais, sob pena de se incorrer em grave violação à organicidade da Carta Maior.”
E isso porque, conforme ressaltado pelo ministro Luiz Fux:
(...) os procuradores municipais possuem o munus público de prestar consultoria jurídica e de representar, judicial e extrajudicialmente, o Município a que estão vinculados. Nesse diapasão, analisam a legalidade e legitimidade dos atos municipais, são consultados a respeito de políticas públicas de inegável relevância social, como saúde, educação e transporte, protegendo o melhor interesse do órgão administrativo e de seus cidadãos, além de atuarem perante os mesmos órgãos que a AGU e as Procuradorias Estaduais, tanto na seara administrativa quanto judicial.
De igual modo, o ministro Edson Fachin consignou em seu voto:
Tendo essas considerações em mente, é possível afirmar que também as Procuradorias municipais consistem em função essencial à Justiça, pois, como já afirmei, suas atribuições equiparam-se ao restante das carreiras integrantes da advocacia pública. E, assim, a simetria de tratamento impõe-se, como forma de garantia da defesa de parcela do interesse público e da justiça.
A EC 132/23 reforçou a densidade constitucional da advocacia pública municipal ao incluir os procuradores municipais no art. 156-B, incisos V e VI, da CF/88, reconhecendo-os como carreiras essenciais ao Estado:
Art. 156-B. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, nos termos e limites estabelecidos nesta Constituição e em lei complementar, as seguintes competências administrativas relativas ao imposto de que trata o art. 156-A:
(...)
V – a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial relativos ao imposto serão realizados, no âmbito de suas respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que poderão definir hipóteses de delegação ou de compartilhamento de competências, cabendo ao Comitê Gestor a coordenação dessas atividades administrativas com vistas à integração entre os entes federativos;
VI – as competências exclusivas das carreiras da administração tributária e das procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão exercidas, no Comitê Gestor e na representação deste, por servidores das referidas carreiras.
A atuação da advocacia pública municipal garante que as políticas públicas, concebidas a partir da vontade popular legitimamente expressa nas urnas, sejam implementadas pelo gestor com segurança jurídica e eficiência, sem distorções ou interferências indevidas de atores externos.
Os procuradores municipais exercem papel estratégico: representam judicial e extrajudicialmente os municípios, prestam assessoria e consultoria jurídica qualificada, controlam a juridicidade dos atos administrativos e asseguram que a vontade política se realize dentro dos marcos constitucionais. Esse agir fortalece a gestão pública, previne litígios, garante eficiência administrativa e, sobretudo, materializa os direitos fundamentais da população no âmbito local, onde eles primeiro se concretizam.
Mais do que um ente federativo, o município é o espaço mais real e concreto da cidadania. É nele que se materializam as políticas públicas mais sensíveis - saúde, educação, mobilidade, habitação, meio ambiente, cultura e urbanismo. No território municipal, as promessas constitucionais deixam de ser palavras e se transformam em realidade concreta: o que está em jogo é a dignidade das pessoas, destinatárias diretas dos direitos fundamentais que sustentam o Estado Democrático e Social de Direito.
Nesse sentido, a advocacia pública municipal atua como elemento de segurança jurídica indispensável para que tais políticas se concretizem de forma eficiente e responsável, garantindo que a ação do gestor municipal esteja alinhada com os marcos constitucionais e com os direitos fundamentais da população.
É preciso enfatizar: há uma relação indissociável entre advocacia pública, direitos fundamentais, políticas públicas e gestão pública. O governante municipal, escolhido pelo voto direto, precisa de segurança institucional para formular e implementar programas que transformem a realidade da comunidade. Essa segurança é proporcionada pelos procuradores do município, que acompanham cada ato administrativo, orientam juridicamente as decisões de governo, representam judicialmente a cidade e protegem a gestão pública.
Onde há advocacia pública, há mais governança, mais responsabilidade fiscal e melhores indicadores sociais e de desenvolvimento humano. Estudos demonstram que municípios com advocacia pública consolidada apresentam melhores índices de IDH, IGM-CFA e IRGF-Firjan (I Diagnóstico da Advocacia Pública Municipal do Brasil, ed. Fórum, Herkenhoff & Prates, 2017). Não se trata de acaso, mas da demonstração de que uma sólida política pública só se realiza quando amparada por segurança jurídica - e esta segurança é proporcionada pela atuação técnica da advocacia pública municipal.
Assim, ao discutir a reforma administrativa, é indispensável reafirmar que a advocacia pública municipal constitui pilar de governança democrática e de fortalecimento do Estado de Direito. O futuro das cidades e a concretização dos direitos fundamentais no plano municipal dependem, em grande medida, dessa função essencial à Justiça, que assegura juridicamente que a vontade política legitimamente expressa nas urnas seja implementada, através do gestor eleito, em políticas públicas eficazes e socialmente justas.