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A proteção integral na era conectada: Avanços e controvérsias do PL 2.628/22 - ECA Digital

“ECA Digital” busca atualizar a proteção de menores na internet, com ênfase em segurança, privacidade e limites à exploração online.

9/9/2025

1. Introdução: O Estatuto da Criança e do Adolescente em face do século XXI

A promulgação do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, representou um marco civilizatório para o ordenamento jurídico pátrio, consagrando a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente como vetores axiológicos fundamentais. Contudo, o legislador da época não poderia antever a profunda e veloz transformação social impulsionada pela internet. Hoje, crianças e adolescentes, como nativos digitais, habitam um universo online repleto de oportunidades de aprendizado e socialização, mas igualmente semeado de riscos inéditos e complexos.

Neste cenário, o PL 2.628/22, popularmente denominado "ECA Digital", emerge como a mais significativa e robusta tentativa de atualizar nosso arcabouço normativo a essa nova realidade. Aprovado pelo Congresso Nacional e aguardando sanção presidencial, o projeto não visa reescrever o ECA, mas sim, de forma mais inteligente, estender seus princípios fundantes ao ambiente digital. Seu objetivo é claro: criar um ecossistema online onde a proteção e o melhor interesse de crianças e adolescentes prevaleçam, impondo deveres e responsabilidades aos atores que moldam esse ambiente: as plataformas digitais. Este artigo se propõe a realizar uma análise jurídica aprofundada do PL 2628/22, ponderando seus avanços, as controvérsias que suscita e os intrincados desafios de sua futura implementação.

2. Pontos positivos: Avanços na tutela de direitos

O PL 2628/22 representa um avanço inegável ao abordar lacunas legislativas e modernizar a proteção infanto-juvenil. Dentre seus principais méritos, destacam-se:

Inversão do ônus da responsabilidade: A lei promove uma mudança de paradigma, saindo de um modelo predominantemente reativo para uma abordagem proativa e preventiva. A responsabilidade primária pela segurança, antes implicitamente delegada às famílias, é agora formalmente partilhada com as plataformas. Estas passam a ter o dever de analisar e mitigar riscos em seus serviços e algoritmos desde a concepção (safety by design), internalizando o custo da proteção.

Proteção robusta de dados pessoais: Alinhando-se a padrões internacionais como o GDPR - General Data Protection Regulation europeu e a própria LGPD, o projeto estabelece regras estritas para o tratamento de dados de menores. Proíbe expressamente o perfilamento comportamental (profiling) para fins publicitários e garante o "direito ao esquecimento" (right to be forgotten), conferindo maior autonomia e controle aos jovens sobre suas informações pessoais.

Combate a conteúdos graves e ilícitos: A proposta é elogiada por sua clareza ao determinar a remoção célere de conteúdos objetivamente ilícitos, como materiais de abuso e exploração sexual infanto-juvenil (CSAM), aliciamento, sequestro de menores e incitação a práticas de automutilação. Essa medida confere maior poder de ação e reduz a burocracia em casos de violações graves e inequívocas.

Regulamentação da publicidade e práticas comerciais: O projeto ataca diretamente a exploração comercial da hipervulnerabilidade infantil. Ao proibir publicidade direcionada a crianças e restringir o uso de técnicas de persuasão abusivas, como as encontradas em loot boxes (caixas de recompensa), a lei protege os menores da "adultização" precoce e da exposição a práticas comerciais predatórias.

Ênfase na educação digital: Para além da regulação sancionatória, a lei reconhece a importância de capacitar crianças, pais e educadores. Ao prever o fomento a programas de literacia e educação digital, o projeto investe na prevenção e no desenvolvimento da autonomia crítica dos jovens para navegar de forma segura, ética e consciente.

3. Pontos negativos e controvérsias: As zonas cinzentas da lei

Apesar das nobres intenções, a redação do PL 2.628/22 suscita críticas e preocupações relevantes no campo jurídico, principalmente no que tange à sua aplicação em situações limítrofes que tangenciam a liberdade de expressão.

A linha entre a moderação necessária e a censura excessiva é tênue. Quem define o que é "conteúdo nocivo"? Como evitar que a lei seja utilizada para silenciar vozes ou restringir o debate legítimo?

Ambiguidade conceitual e insegurança Jurídica: A principal crítica de especialistas reside na utilização de termos abertos e de baixa densidade normativa, especialmente ao tratar de conteúdos que não são manifestamente ilícitos, mas podem ser considerados "nocivos" ou "prejudiciais". Essa subjetividade cria uma perigosa "zona cinzenta" que pode levar a interpretações divergentes e, paradoxalmente, facilitar o descumprimento por parte das empresas, que podem alegar incerteza sobre o escopo de suas obrigações.

O risco da censura privada: A obrigação de remover conteúdos a partir de notificação extrajudicial (modelo notice and takedown) em casos não objetivamente criminosos coloca as plataformas em um severo dilema jurídico, com potencial efeito silenciador (chilling effect):

Se removerem o conteúdo: Podem ser acionadas judicialmente por usuários que aleguem violação à liberdade de expressão.

Se não removerem: Podem sofrer sanções pesadas, incluindo multas milionárias, com base na nova lei. Esse cenário incentiva uma postura de "remoção preventiva" excessiva, na qual as plataformas, para mitigar seu risco legal e financeiro, optarão por suprimir conteúdos lícitos, resultando em uma forma de censura privada em larga escala.

Escopo limitado da abordagem: Críticos apontam que o projeto, ao focar exclusivamente na proteção infanto-juvenil, perde a oportunidade de abordar questões sistêmicas mais amplas das redes sociais, como o impacto de algoritmos na saúde mental de todos os usuários ou a disseminação de desinformação. Questões de tal magnitude demandariam uma técnica legislativa ainda mais apurada e abrangente, talvez em um marco regulatório geral para plataformas digitais.

4. Conclusão: Um Marco Necessário, Um Caminho Árduo

O PL 2.628/22 é um passo legislativo corajoso e indispensável. Ele finalmente reconhece que a cidadania, a dignidade e os direitos de crianças e adolescentes devem ser protegidos com o mesmo vigor no ambiente digital e no mundo físico. Ao transferir parte do ônus da segurança para as plataformas, regular a publicidade abusiva e fortalecer a proteção de dados, o "ECA Digital" materializa o princípio da proteção integral para a era conectada.

Contudo, os desafios são proporcionais à sua ambição. As controvérsias sobre a liberdade de expressão, somadas às monumentais dificuldades técnicas de verificação de idade e moderação de conteúdo, exigirão um esforço contínuo de diálogo, regulamentação infralegal criteriosa por parte do Poder Executivo e, eventualmente, aprimoramento jurisprudencial pelo Judiciário.

O sucesso do ECA Digital não será medido apenas por sua sanção, mas pela capacidade do Estado, das empresas de tecnologia e da sociedade civil de, juntos, transformarem seus princípios em realidade prática e mensurável. Trata-se do início de uma longa e complexa jornada para edificar um futuro digital onde cada criança e adolescente possa, de fato, se desenvolver em segurança, liberdade e plenitude.

Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior
Phd em Direito, advogado e professor universitário.

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