Introdução - a nova fronteira do crédito
A transformação digital fez da tecnologia a espinha dorsal da economia contemporânea. Sistemas de gestão, softwares sob medida, serviços em nuvem, plataformas de pagamento e soluções de cibersegurança são hoje tão essenciais quanto energia elétrica ou fornecimento de internet.
Esse mercado, que movimentou bilhões em 2023 e cresceu 18,3% segundo a ABES, também carrega um paradoxo: o mesmo dinamismo que sustenta a inovação amplia os riscos de inadimplência contratual.
Empresas de tecnologia enfrentam desde usuários inadimplentes em planos SaaS até clientes corporativos que deixam de pagar licenças e manutenções críticas. Nesse ambiente, a cobrança não é trivial: como exigir o pagamento sem violar direitos autorais, contratos de consumo ou comprometer a continuidade de serviços digitais essenciais?
1) O panorama da inadimplência digital
O modelo de negócios em tecnologia traz desafios singulares:
- Assinaturas SaaS: recorrência elevada de inadimplência, especialmente em pequenas empresas.
- Softwares sob medida: disputas sobre entregas parciais e alegações de falha na prestação.
- Cloud computing: interrupção indevida pode gerar responsabilização civil.
- Startups: contratos frágeis, rotatividade de clientes e baixa capacidade de enforcement.
Segundo a IDC Brasil (2024), cerca de 22% das empresas de tecnologia relataram inadimplência relevante em seus contratos, sobretudo em SaaS e serviços de nuvem.
2) Ferramentas jurídicas aplicáveis
O ordenamento jurídico já oferece instrumentos específicos ao setor digital:
- Execução contratual (CPC, art. 784, III): contratos assinados com duas testemunhas são títulos executivos extrajudiciais.
- Cobrança ou monitória: cabíveis quando há notas fiscais ou registros de uso sem formalidade executiva plena.
- Tutelas de urgência: possibilidade de bloqueio do acesso ao sistema, desde que proporcional e sem afetar direitos fundamentais.
- Arbitragem: comum em contratos empresariais, especialmente quando há cláusula internacional.
- Propriedade intelectual: protegida pela lei 9.609/1998 (lei de software) e pela lei 9.610/1998 (direitos autorais), que reforçam a proteção do desenvolvedor contra uso indevido.
3) O dilema estratégico: cobrar ou desligar?
Na tecnologia, o dilema vai além da cobrança. Cortar imediatamente o serviço pode configurar abuso e causar danos irreversíveis ao cliente; por outro lado, manter o acesso irrestrito incentiva a inadimplência.
A decisão deve considerar:
- Natureza do serviço: é essencial ou acessório para o negócio do cliente?
- Impacto reputacional: cortes mal conduzidos podem gerar publicidade negativa.
- Viabilidade jurídica: como preservar o crédito sem infringir normas de consumo ou LGPD?
4) Jurisprudência aplicada
O STJ já enfrentou litígios digitais, conferindo segurança jurídica ao setor:
- Contrato de informática como título executivo
- “Contrato de prestação de serviços de informática assinado por duas testemunhas constitui título executivo extrajudicial.” (REsp 1.116.117/RS, Rel. min. Nancy Andrighi, 3ª turma, DJe 28/4/2010).
- Suspensão de serviços digitais por inadimplência
- “É legítima a suspensão de serviços digitais por inadimplemento, desde que haja prévia notificação e respeito aos princípios da proporcionalidade e boa-fé.” (REsp 1.614.721/SP, Rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª turma, DJe 19/9/2017).
Esses precedentes reforçam que cobrar e suspender são possíveis, desde que acompanhados de notificação formal, proporcionalidade e respeito às garantias contratuais.
5) Conclusão - o equilíbrio necessário
A inadimplência em tecnologia exige abordagem híbrida: rigor contratual aliado à sensibilidade estratégica.
Empresas que estruturam contratos claros, com cláusulas de execução, penalidades escalonadas, mecanismos de resolução célere e proteção de propriedade intelectual, estarão mais protegidas.
Em resumo: no mundo digital, cobrar é tão essencial quanto proteger o código-fonte.
___________
Referências
ABES - Associação Brasileira das Empresas de Software
IDC Brasil - Estudos de mercado
Lei 9.609/1998 - Lei de Software
Lei 9.610/1998 - Direitos Autorais
CPC - Lei 13.105/15