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Responsabilidade civil e boas práticas empresariais na promoção da saúde mental

Trabalho e saúde mental mantem estreita relação. Portanto, adotar boas práticas no ambiente laboral é essencial para preservar o bem-estar dos empregados e mitigar riscos jurídicos à empresa.

23/9/2025
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A constante transformação do mundo do trabalho assume, no contexto contemporâneo, contornos específicos que a distinguem de períodos históricos anteriores, sobretudo pela velocidade de sua ocorrência. Impulsionadas por mudanças legislativas, fatores sociais e econômicos, bem como pela adoção de novas tecnologias, essas transformações conduzem a uma nova configuração das relações laborais, caracterizada pela maior flexibilidade contratual, pela automatização das rotinas e pelo uso cada mais frequentes de métricas como instrumentos de gerenciamento.

Essa nova configuração aprimora as práticas empresariais, conferindo-lhes maior precisão a partir de dados objetivos e do monitoramento de indicadores de desempenho, resultados e qualidade. Se, por um lado, essa metodologia assegura maior controle, transparência nos processos avaliativos e apoio à tomada de decisão baseada em dados, por outro, acentua a pressão sobre os trabalhadores, que passam a atuar em ambientes laborais permeados pela competitividade e por cobranças contínuas.

Esse modelo de gestão empresarial pode conduzir à busca por resultados a qualquer custo, ensejando práticas que extrapolam os limites da legítima cobrança por metas e configuram assédio moral, caracterizado pelo abuso do poder diretivo do empregador e afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho. Nessas circunstâncias, o bem-estar e a saúde psíquica dos trabalhadores podem ser comprometidos, ao mesmo tempo em que a organização pode ser responsabilizada pelos danos causados ao trabalhador e exposta a riscos reputacionais.

A gravidade do problema se torna ainda mais evidente quando a saúde mental da população é analisada no contexto global. A OMS - Organização Mundial da Saúde apurou que mais de 1 bilhão de pessoas vivem com transtornos mentais em todo o mundo (2025). Esse adoecimento resulta de múltiplas causas, que vão desde fatores individuais, como vulnerabilidade e baixa autoestima, até questões sociais, desigualdades econômicas e condições laborais adversas. No Brasil, a dimensão do problema ficou evidente com os dados divulgados pelo Ministério da Previdência Social. Em 2024, foram registrados mais de 470 mil afastamentos por transtornos mentais, o maior número dos últimos dez anos.

Esse cenário ajuda a explicar por que vivemos uma verdadeira “pandemia de saúde mental”, com prejuízos significativos tanto para a produtividade das empresas quanto para a qualidade de vida dos trabalhadores e suas famílias.

É inegável que trabalho e saúde mental mantêm estreita correlação. Embora a origem das causas dos afastamentos seja diversa, parcela significativa dos casos apresenta nexo direto entre o adoecimento e as condições laborais. Os dados apresentados pelo Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (SmartLab) revelam que, anualmente, mais de 1 milhão de dias de trabalho produtivo são perdidos em razão dos afastamentos decorrentes de transtornos mentais cuja origem se relaciona diretamente às condições de trabalho.

Não por acaso, o Ministério da Saúde atualizou, em 2023, a LDRT - Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho, incluindo transtornos mentais como burnout, ansiedade e depressão. A inclusão dessas doenças traz consequências diretas para o empregador: quando reconhecido o nexo de causalidade entre trabalho e adoecimento, o trabalhador passa a ter direito à estabilidade de 12 meses após a alta médica, além da possibilidade de responsabilização da empresa

No âmbito legislativo, merece destaque a lei 14.831, de 27/3/24 que instituiu o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental. Esta norma busca estimular práticas empresariais voltadas à prevenção de riscos psicossociais, ao acolhimento de trabalhadores e à construção de ambientes laborais saudáveis, reconhecendo as empresas que assim o fizerem por meio da certificação criada pela lei.

Nessa linha evolutiva de regulamentação, encontra-se em vigor a NR-01 que inclui expressamente os riscos psicossociais no escopo da gestão de saúde e segurança do trabalho. O normativo estabeleceu um período de caráter educativo até maio de 2026, a partir do qual o Ministério do Trabalho iniciará a aplicação de sanções às empresas que não estiverem adequadas às novas exigências. A NR-01 impõe às organizações o dever de identificar, avaliar e controlar, de forma documentada, os riscos inerentes às suas atividades, abrangendo também aqueles de natureza psicossocial. Esse foi um importante avanço normativo inserindo o tema “saúde mental” no centro da agenda empresarial.

Nesse contexto, a implementação de políticas preventivas relacionadas à gestão de riscos psicossociais, além de mandatória a luz da referida norma, confere à empresa maior segurança jurídica. A comprovação de tais práticas configura elemento probatório relevante para mitigar riscos, tais como, autuações por parte dos órgãos de fiscalização, bem como condenações em demandas trabalhistas. Nesta última hipótese, importante destacar que a responsabilização civil da empresa está condicionada à identificação da origem do adoecimento. Somente quando demonstrado que a enfermidade resultou das condições de trabalho, ou que estas concorreram para o agravamento de quadro clínico preexistente, restará configurado o nexo de causalidade entre a doença e o ambiente laboral, ensejando, assim, a responsabilização da empresa.

À luz do arcabouço normativo aplicável, especialmente da NR-01, e decisões judiciais sobre o tema é possível delinear diretrizes práticas que orientam as organizações no processo de adequação às exigências relativas à gestão de riscos psicossociais:

  • Criação de políticas internas de saúde mental: Estabelecer normas e diretrizes claras contra assédio, discriminação e sobrecarga de trabalho, promovendo ambientes respeitosos. Tais políticas devem ser objeto de ampla divulgação no âmbito organizacional e podem ser utilizadas como prova documental em demandas judiciais e administrativas.
  • Implementação de campanhas internas de conscientização: Incorporar ao calendário corporativo iniciativas como Setembro Amarelo (prevenção ao suicídio), Outubro Rosa (prevenção ao câncer de mama), Novembro Azul (prevenção ao câncer de próstata) e o Sipat - Semana Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho. Tais campanhas reforçam o compromisso com a saúde integral e conscientizam trabalhadores.
  • Adoção de canal de escuta confiável: Instituir um canal de denúncias que possibilite aos trabalhadores relatar, de forma segura e confidencial, situações de assédio, discriminação, sobrecarga ou quaisquer outros fatores que comprometam a saúde mental. Esse instrumento funciona como mecanismo de prevenção, monitoramento e resposta a riscos psicossociais, permitindo à organização agir tempestivamente na solução de conflitos e reduzir a possibilidade de agravamento de danos.
  • Promoção do Diálogo Social: Criar espaços para troca de informações entre gestores e empregados. Essa metodologia, criada pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), dá voz às pessoas, promovendo a cooperação entre elas, além disso, é uma ferramenta que contribui para a prevenção e resolução de conflitos relacionados ao trabalho.
  • Capacitação de lideranças e equipes: Realização de programas de treinamento voltados à saúde mental, à gestão humanizada e à prevenção de riscos psicossociais, com foco na sensibilização e no desenvolvimento de competências.
  • Documentação e monitoramento: Registrar adequadamente, por meio de documentos, os treinamentos realizados, com lista de presença, conteúdo programático, dom mesmo modo as atas da CIPA e campanhas internas, compondo um histórico documental em conformidade com as normas (especialmente com as regras da NR01 sobre documentação).

Antecipar-se às exigências legais e alinhar-se a essa agenda representa, portanto, um dever jurídico que, além de atender às imposições normativas, consolida o compromisso social da empresa com a promoção da saúde mental no ambiente de trabalho.

Autor

Viviane Pires Advogada com atuação no mercado corporativo, especialista em compliance, relações trabalhistas e sindicais. Preside a Comissão de Compliance ABA/Niterói, membro na OAB/RJ e no Conselho Emp. da Firjan.

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