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A motivação das decisões judiciais e a discricionariedade hermenêutica

As decisões judicias que se fundamentam na discricionariedade do intérprete geram insegurança jurídica, perda da força normativa da Constituição e ineficácia dos direitos fundamentais.

3/10/2025

Há um famoso ditado “popular” do mundo jurídico dizendo que “cabeça de juiz e bunda de neném, ninguém sabe o que vem”. O ditado, apesar de cômico, diz algo importante acerca do Judiciário brasileiro: que o intérprete é imprevisível. Nesse sentido, como é possível que vários casos semelhantes tenham várias respostas? São essas respostas oriundas de decisões carentes de motivação? Como isso influencia na força normativa da Constituição, nos direitos fundamentais e na segurança jurídica.

Sob esse viés, o presente ensaio será dividido em três tópicos: (I) as decisões judiciais (em sentido amplo) devem ser fundamentadas, sem exceção; (II) a discricionariedade judicial não se atenta à motivação das decisões; (III) portanto, causam perda da força normativa da Constituição, retrocesso aos direitos fundamentais e insegurança jurídica.

A fundamentação enquanto regra inafastável das decisões judiciais

A decisão judicial (sentenças, decisões interlocutórias, acórdãos e etc.) deve ser devidamente fundamentada e, caso não seja, cabe embargos de declaração (art. 1022, CPC1). Depreende-se isso do art. 93, IX, da CF/88, in verbis:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação (Grifos do autor);

Ademais, o CPC disciplina a fundamentação das decisões em seu art. 489, § 1º, I, II, III, IV, V e VI:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (Grifos do autor).

Outrossim, a regra na resposta a ser dada ao caso concreto é a fundamentação daquela. Não pode o magistrado realizar a fundamentação, ao analisar as questões de fato e de direito, de forma genérica ou omissa. Feito dessa forma, considera-se a decisão nula e, portanto, inválida.

Dessa forma, a decisão do intérprete deve ser fundamentada, unindo fato e direito, explicitando os motivos que o levaram a decidir dessa ou daquela maneira. Caso não faça, é nula de pleno direito.

A discricionariedade do intérprete

No Direito brasileiro, muitas normas possuem o que a doutrina denomina de “textura aberta”. Parte-se do pressuposto que o Direito brasileiro contemporâneo e suas normas são, muitas vezes, indeterminadas, ficando a cargo do intérprete complementá-las. Porém, nessa interpretação do texto, há ampla liberdade do intérprete. Desse modo, quando se abre margem discricionária (liberdade) interpretativa para o magistrado decidir em um dado caso concreto, pode-se ter múltiplas respostas para um mesmo caso concreto. Ocorre que muitas dessas posições divergentes versando a respeito de um mesmo caso não sejam as mais adequadas constitucionalmente.

Menciona-se, diante disso, os arts. 4º e 5º da lei de LINDB - Introdução às Normas do Direito Brasileiro:

Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

O que se entende por costumes e bem comum? Percebe-se que os artigos em comento não definem as expressões que explicitam. Deixam, destarte, a cargo do juiz a interpretação, de forma subjetiva, desses conceitos, para que preencha essa lacuna legislativa. Inclusive, o art. 140, parágrafo único, do CPC2, afirma que o magistrado não pode se eximir de julgar por lacunas ou obscuridades na legislação e, quando previsto em lei, poderá decidir amparado na equidade. O que se entende por este conceito? Depende, na verdade, da consciência do julgador!

O que se quer demonstrar nesse tópico é que a legislação, muitas vezes obscura e lacunosa, deixa a cargo do juiz preencher essas obscuridades e lacunas e de forma arbitrária.

Urge mencionar que a discricionariedade interpretativa traz insegurança jurídica. Diante das múltiplas interpretações para um mesmo fato, havendo muitas divergências por parte dos tribunais, violando o art. 926, do CPC, dizendo este que a jurisprudência dos tribunais deve ser íntegra, coerente e estável:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Sob esse viés, tem-se a dificuldade e a perda de força normativa da Constituição e a ineficácia dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, com o advento do neoconstitucionalismo do segundo pós-guerra, a Constituição passou a ser dirigente e compromissória (STRECK, 2017). Passou a ter força normativa, seus dispositivos se tornaram normativos e aplicados na concretude, devendo a legislação infraconstitucional estar de acordo com a Carta Magna, em uma interpretação conforme a Constituição. No entanto, a discricionariedade do intérprete gera arbitrariedades na aplicação do Direito, muitas vezes não sendo a norma aplicada conforme a Constituição.

Consequentemente os direitos fundamentais não são efetivados, visto que eles estão contidos no texto constitucional e, por meio do decisionismo judicial, ficam à mercê do entendimento do intérprete, sendo sopesados e ponderados nos casos concretos de maneira arbitrária e com alta carga de subjetividade.

Diante do exposto, a discricionariedade como ampla margem de liberdade para o intérprete fragiliza a Constituição e os direitos fundamentais, sendo o decisionismo judicial inconstitucional.

Conclusão

Ante o exposto, conclui-se:

  1. Decisão sem fundamentação é nula/inexistente (dependendo da ótica doutrinária), sendo requisito obrigatório das decisões;
  2. A discricionariedade judicial, traz insegurança jurídica, visto que, ao dar ampla liberdade interpretativa, a jurisprudência se torna instável, a Constituição perde sua força normativa e os Direitos Fundamentais não são efetivados, sendo o decisionismo judicial inconstitucional;

______________________

1. Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para:

I - esclarecer obscuridade ou eliminar contradição;

II - suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento;

III - corrigir erro material.

Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que:

I - deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento;

II - incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, § 1º.

2. Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

Parágrafo único. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 19 de setembro de 2025.

BRASIL. LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 19 de setembro de 2025.

STRECK. Lênio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

Erick Labanca Garcia
Graduando em Direito, estagiário jurídico e cronista

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