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Governança, gestão de riscos e integridade: Efetividade em contratações públicas

O artigo apresenta como a adequada integração entre governança, gestão de riscos e integridade convergem para o sucesso das contratações nas organizações públicas.

23/9/2025

Introdução

Ao se deparar com o grande arcabouço jurídico relacionado ao tema licitações e contratos, o gestor público precisa delimitar os parâmetros basilares pelos quais deverá se guiar. Nesse direcionamento, é fundamental compreender a lei 14.133/21 como o ponto de partida predominante, pois, representa o caminho para que a Administração Pública maximize a eficácia, a transparência e a competitividade, tendo como foco a efetiva entrega de resultados de interesse público (BRASIL, 2025, p. 11).

Como uma das inúmeras inovações trazidas pela atual LLC - Lei de Licitações e Contratos, a governança das contratações se desvela como ferramenta essencial para o alcance dos objetivos das aquisições públicas definidos pela própria lei.

Portanto, compreender esse novo instrumento, combinando-o com a gestão de riscos e a integridade, se tornou crucial para que os gestores atuantes nos metaprocessos de contratação exerçam suas tarefas pautados em um modelo-tríade capaz de gerar valor e efetividade aos órgãos públicos, a partir de uma coordenação de capacidades técnicas em meio às incertezas dos processos de aquisição (VIEIRA e BARRETO, 2019).

Governança nas contratações públicas

O conceito de governança pública, inicialmente estruturado pelo Tribunal de Contas da União e, posteriormente, assimilado pelo decreto 9.203/21, apresenta uma clara separação das instâncias de governança e de gestão. Enquanto a primeira tem função direcionadora, a segunda se volta para as atividades executoras (BRASIL, 2024). Se não, vejamos.

Decreto 9.203/21

Art. 2º Para os efeitos do disposto neste Decreto, considera-se:

I - governança pública - conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade;

Tendo sua base conceitual desenvolvida a partir do setor privado (corporativo), a governança pública busca superar o mesmo tipo de problema enfrentado pela esfera corporativa, que é conhecido como “Conflito de Agência” ou conflito entre “Principal x Agente”. Esse conflito surge pela assimetria de informações entre os dois grupos, ou seja, quando o principal (detentor da propriedade e do poder de delegar) deixa de ter suas expectativas atendidas pelo agente (delegado), uma vez que este, dispondo de mais informações e controle sobre as atividades realizadas, toma decisões em benefício próprio (BRASIL, 2024).

Dessa forma, considerando o pressuposto de que tal conflito sempre existirá, pois as sucessivas delegações de atividades são parte da dinâmica de implementação das políticas públicas, os mecanismos de governança figuram como elementos mitigadores e visam a aumentar a probabilidade de os administradores (agentes) atuarem para o alcance dos objetivos definidos pelo principal (NARDES, ALTOUNIAN E VIEIRA, 2018, p. 126-127; BRASIL, 2024).

Essa assertiva pode ser observada pela vertente de não existir contrato completo entre principal e agente, que preveja e garanta todas as expectativas de um e de outro, e, também, pelo fato de que o “agente perfeito” dificilmente fará parte dessa relação. Portanto, os contratos incompletos e os agentes imperfeitos acabam por emergir os conflitos informacionais e de interesse, gerando os chamados custos de agência (ANDRADE E ROSSETTI apud MACHADO, FERNANDES E BIANCHI, 2016).

Em outras palavras e em perfeita sintonia com o entendimento de Jensen e Meckling (1976), a própria governança, enquanto instrumento mitigatório desse desalinho entre principal e agente, pode ser vista como um dos custos de agência.

A “governança das contratações”, com sua previsão registrada no art. 11 da lei 14.133/21, in verbis, possui a mesma ambição de contenção do conflito de agência, oferecendo um modelo instrumental e estruturado sob mecanismos direcionadores para o alcance dos objetivos do órgão.

Lei 14.133/21

Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:

(...)

Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações. (grifo nosso)

Embora a LLC insira a governança das contratações como um ato circunscrito ao conjunto dos processos licitatórios, sua plena definição foi amparada pela portaria SEGES 8.678/21, que delineou o tema no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional:

Portaria SEGES 8.678/21

Art. 2º Para os efeitos do disposto nesta Portaria, considera-se:

III - governança das contratações públicas: conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a atuação da gestão das contratações públicas, visando a agregar valor ao negócio do órgão ou entidade, e contribuir para o alcance de seus objetivos, com riscos aceitáveis (grifo nosso)

Conjugando-se a compreensão a partir dos dois instrumentos legais supramencionados, nota-se, como já mencionado, a natureza instrumental da governança das contratações, posto que, tanto pela LLC quanto pela Portaria seu propósito é assegurar o alcance de objetivos centrados nas contratações públicas.

Outra questão importante de se observar é que a definição dada para governança pública guarda estreita correlação com o conceito de governança das contratações, sobretudo quanto ao conjunto de mecanismos adjudicados à instância de governança. Entretanto, a despeito de suas similaridades e alinhamentos, o objetivo de ambas aponta para amplitudes bem distintas. Enquanto a primeira se volta para o desenvolvimento nacional e para a entrega de resultados efetivos e desejados pela sociedade e pelo mercado (PALUDO e OLIVEIRA, 2024, p. 2), a segunda busca o alcance dos objetivos do órgão ou entidade na seara específica das contratações públicas. 

A integração da governança, da gestão de riscos e da integridade

No contexto das contratações públicas, a gestão de riscos é uma previsão iluminada também pelo art. 11 da lei 14.133/21, com aplicação em dois níveis: o primeiro associado às funções de contratação, em que servirá para reduzir o nível de incerteza dos metaprocessos da contratação pública, e o segundo mais relacionado às aquisições individualizadas da organização, nas quais contribuirá para a geração de valor pretendido para a gestão das contratações (BRASIL, 2021 e BRASIL, 2024).

Em perspectiva operacional, diversos modelos orientam a implementação da gestão de riscos no setor público, cabendo à alta administração a identificação quanto ao que melhor atenda às necessidades da organização (BRASIL, 2021). O Referencial Básico de Gestão de Riscos do TCU, embora apresente alguns desses modelos, opta por detalhar o processo de gestão de riscos com base na Norma ISO 31000, tendo em vista fornecer princípios e diretrizes aplicáveis ao gerenciamento de qualquer tipo de risco em toda ou em parte de qualquer tipo de organização.

Figura 1 - Relação entre princípios, estruturas e processos de Gestão de Riscos

Fonte: Referencial Básico de Gestão de Riscos - TCU

Em linhas gerais, a norma propõe a adoção de atividades coordenadas que permitem a identificação, análise, avaliação, tratamento e monitoramento dos riscos que podem impactar negativamente o alcance dos objetivos. A figura 1 ilustra a estrutura metodológica de gestão de riscos da ISO 31000 (BRASIL, 2018). Adicionando a integridade a essa proposta de abordagem integrada, deve-se compreendê-la como a pedra angular da boa governança, seja pública ou privada. Ela é um dos pilares das estruturas políticas, econômicas e sociais, a partir da promoção de relações institucionais e ambientes íntegros, com informações confiáveis (OCDE, 2022).

Segundo a OCDE (2017), integridade pública é definida como o “alinhamento consistente e adesão a valores, princípios e normas éticas comuns para sustentar e priorizar o interesse público”. Em outras palavras, poderá significar:

  1. Fazer a coisa certa, mesmo quando ninguém estiver olhando;
  2. Colocar o interesse público à frente dos próprios interesses; e
  3. Desempenhar os deveres de uma forma que resista ao escrutínio publico.

O desenvolvimento de um sistema e de uma cultura de integridade contribuirá como efetiva linha de defesa ao triângulo da fraude, formulado por Donald Cressey em 1953, ou ao diamante da fraude, proposto por Wolfe e Hermanson em 2004 como um aprimoramento ao modelo de Cressey. Ambos os estudos apresentam os fatores que levam ao cometimento de ações não íntegras em diversos contextos (BOLDT, 2025).

Portanto, a integração dos mecanismos de governança, da gestão de riscos e da integridade oferecerá aos gestores os instrumentos adequados para o alcance dos objetivos das contratações públicas e das próprias organizações, na medida em que mitigarão os efeitos conflitivos das assimetrias de informação entre principal e agente e ao mesmo tempo impulsionarão o atendimento de padrões superiores de desempenho e de conformidade.

Figura 2 - Integração de governança, gestão de riscos e integridade

Fonte: Elaborado pelos autores.

Conclusão

Os desafios inerentes ao metaprocesso de contratação pública estão circunscritos a um extenso arranjo sistêmico, legal e operacional, que, muitas vezes, recai sobre setores sem a adequada estruturação mínima.

Ao incumbir a alta administração dos órgãos ou entidades da responsabilidade pela governança das contratações, incluindo o estabelecimento da gestão de riscos, dos controles internos e de um ambiente íntegro e confiável, a lei 14.133/21 promove um importante avanço qualitativo na Administração Pública, à medida que envolve os próprios tomadores de decisão, os formuladores de políticas públicas e os responsáveis pelos planejamentos estratégicos no ambiente da gestão das contratações.

Dessa forma, a integração dos mecanismos da boa governança com a gestão de riscos e com a Integridade no ambiente multidisciplinar da governança das contratações passa a ser um ativo estratégico relevante para a competente estruturação das organizações, para que a entrega de serviços públicos seja efetivamente alcançada, com o máximo valor agregado e pautados em processos transparentes, eficientes e sustentáveis.

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BRASIL. Presidência da República. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 12 set. 2025.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 9.203, de 22 de novembro de 2021. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9203.htm. Acesso em: 10 set. 2025.

BRASIL. Ministério da Economia. Portaria nº 8.678, de 19 de julho de 2021. Dispõe sobre a governança das contratações públicas no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/portarias/portaria-seges-me-no-8-678-de-19-de-julho-de-2021. Acesso em: 08 set. 2025.

BRASIL. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Manual de orientações e boas práticas na nova lei de licitações e contratos administrativos. Brasília: Diretoria de Normas e Sistemas de Logística/SEGES/MGI, 2025.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações & Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU. Brasília: TCU, Secretaria-Geral da Presidência, 2024.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial Básico de Gestão de Riscos. Brasília: TCU, 2018

PALUDO, Augustinho V.; OLIVEIRA, Antônio G. Governança Organizacional Pública e Planejamento Estratégico para Órgãos e Entidades Públicas. Indaiatuba, SP: Foco, 2024.

NARDES, João Augusto Ribeiro; ALTOUNIAN, Cláudio Sarian; VIEIRA, Luís Afonso Gomes. Governança Pública: o Desafio do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

VIEIRA, James Batista; BARRETO, Rodrigo Tavares de Souza. Governança, Gestão de Riscos e Integridade. Brasília: Enap, 2019.

MACHADO, Débora Gomes; FERNANDES, Francisco Carlos; BIANCHI, Márcia. Teoria da Agência e Governança Corporativa: Reflexão acerca da Subordinação da Contabilidade à Administração. Revista de Auditoria, Governança e Contabilidade, v.4 n. 10, mar.-abr. 2016. Disponível em: https://revistas.fucamp.edu.br/index.php/ragc/issue/view/52. Acesso em: 20 ago. 2025.

BOLDT, Raphael. Uma análise crítica do Triângulo da Fraude de Donald Cressey: limitações e aplicações no contexto dos crimes corporativos. Disponível em: https://zenodo.org/records/14889490. Acesso em 13 set. 2025.

OCDE (2017). Manual de Integridade Pública da OCDE. Disponível em: https://www.oecd.org/content/dam/oecd/pt/publications/reports/2020/05/oecd-public-integrity-handbook_598692a5/db62f5a7-pt.pdf. Acesso em: 08 set. 2025.

OCDE (2022). Modernizando a avaliação de riscos para a integridade no Brasil: Rumo a uma abordagem comportamental e orientada por dados. OECD. Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/61d7fc60-pt.

Jader Esteves da Silva
Doutorando, Mestre e Especialista em Direito. Bacharel em Direito e em Ciências Navais. Professor de Licitações e Contratos Administrativos. Autor e Palestrante. Instagram: @jader.esteves

Marcelo Andrade
Mestre em Economia e Gestão Empresarial (UCAM). Mestre em Ciências Navais (EGN). Pós-Graduado em Governança Pública (EBRADI). Pós-Graduado em Gestão e Governança (Focus).

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