Migalhas de Peso

Entre a utopia digital e a Constituição: A declaração de independência do ciberespaço no Brasil

Ciberespaço livre encontra a realidade brasileira. Liberdade digital pede regulação e responsabilidade proporcionais, com CF/88, MCI e LGPD.

23/9/2025

Nota inicial de adaptação: Este texto é uma adaptação, com atualização pontual, do artigo originalmente publicado na obra coletiva “30 anos da internet comercial no Brasil – Direito digital: uma homenagem à ministra Nancy Andrighi” (Leme-SP: Mizuno, 2025, ISBN 978-85-7789-731-5), organizada por Paulo Dias de Moura Ribeiro, Wilson Furtado Roberto e Aline Gomes Caselato, com publicação do capítulo entre as páginas 129–149.

John Perry Barlow concebeu, em 1996, o ciberespaço como “a nova casa da mente”, separada dos “gigantes cansados de carne e metal”, e proclamou que a comunidade online seria capaz de resolver seus conflitos sem a tutela do Estado, por meio de normas próprias e espontâneas (BARLOW, 1996).

Ao confrontar essa promessa com a experiência do ordenamento constitucional brasileiro, a separação radical entre o digital e o físico revela-se insustentável: a rede depende de cabos, servidores, energia, dispositivos e pessoas, todos inseridos sob jurisdições estatais; os danos produzidos online incidem sobre titulares concretos de direitos e não podem ser deixados, apenas, à autorregulação privada (BARLOW, 1996).

A utopia de independência total do ciberespaço supõe uma dissociação entre mente e corpo que não se verifica na prática. A materialidade da infraestrutura de rede evidencia que o ambiente digital está ancorado em espaços e ordenamentos específicos. Por isso, a proteção de bens como honra, imagem, intimidade e segurança exige mecanismos públicos de prevenção e responsabilização proporcionais, sem abdicar da liberdade de expressão, mas impedindo que ela se converta em licença para violar direitos fundamentais.

A Constituição de 1988 estabelece, de forma direta, limites e garantias que moldam a liberdade no ambiente digital. Diz o texto constitucional: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” e “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial” (BRASIL, 1988). O sentido desses comandos, lido à luz da sociedade da informação, é inequívoco: privacidade e proteção de dados integram o núcleo da cidadania informacional, e a intervenção judicial, quando necessária e proporcional, é compatível com a defesa das liberdades.

O Marco Civil da Internet reafirma a centralidade da rede, mas condiciona seu uso à proteção da pessoa usuária. Transcreve-se o núcleo do art. 7º: “o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; II – inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial”. E o art. 8º complementa: “a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet” (BRASIL, 2014). A conjugação desses dispositivos demonstra que liberdade e privacidade caminham juntas; negar uma é minar a outra.

A Lei Geral de Proteção de Dados desloca o debate da autorregulação pura para um regime de direitos, princípios e responsabilidades. O art. 1º dispõe expressamente: “esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural” (BRASIL, 2018).

A regulação do tratamento massivo de dados, portanto, não é supérflua à liberdade; é condição de sua efetividade, pois decisões automatizadas e perfis informacionais influenciam concretamente oportunidades, escolhas e relações sociais (BRASIL, 2018).

A tutela penal de bens jurídicos digitais confirma que há condutas cuja gravidade exige coerção legítima. A lei 12.737/12 introduziu no Código Penal o tipo de invasão de dispositivo informático: “invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita” (BRASIL, 2012). O mínimo regulatório, assim, protege a integridade de sistemas e dados, impedindo que a promessa de liberdade seja capturada por práticas predatórias.

A mediação algorítmica na esfera pública justifica balizas específicas em matéria eleitoral. A resolução TSE 23.610/19 exige transparência no uso de conteúdo sintético: “a utilização na propaganda eleitoral, em qualquer modalidade, de conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência artificial para criar, substituir, omitir, mesclar ou alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons impõe ao responsável pela propaganda o dever de informar, de modo explícito, destacado e acessível que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e a tecnologia utilizada”. E veda a venda de impulsionamento “para veiculação de fato notoriamente inverídico ou gravemente descontextualizado que possa atingir a integridade do processo eleitoral” (BRASIL, TSE, 2019). Não há aqui cerceamento da crítica política, mas preservação da autenticidade do debate.

O debate sobre a responsabilidade civil de provedores por atos de terceiros, em exame com repercussão geral no STF, ilustra a necessidade de intervenção constitucional entre proteção rápida de direitos e a preservação da liberdade de expressão. Qualquer solução exigirá calibragem que evite tanto a impunidade informacional quanto a remoção indevida de conteúdos lícitos (BRASIL, STF, s.d.). A simples existência dessa controvérsia indica que a autorregulação, embora valiosa, não basta em cenários de assimetria de poder e efeitos sistêmicos de desinformação.

No texto originalmente publicado, os autores afirmam textualmente: “A intervenção estatal, longe de ser um entrave à liberdade digital, revela-se essencial para garantir um ciberespaço seguro, ético e inclusivo.” (VASCONCELOS; CORDEIRO, 2025). Essa formulação encaixa-se como fundamento conclusivo desta versão condensada, pois explicita que regulação e liberdade não são polos excludentes, mas elementos complementares de um mesmo arranjo democrático.

A Declaração de Independência do Ciberespaço foi decisiva para afirmar a internet como território de liberdade (BARLOW, 1996). No Brasil, porém, a experiência normativa — Constituição, Marco Civil, LGPD, Lei 12.737/2012 e Resolução TSE nº 23.610/2019 — demonstra que a liberdade precisa de arquitetura jurídica para existir de modo inclusivo, seguro e democrático (BRASIL, 1988; BRASIL, 2014; BRASIL, 2018; BRASIL, 2012; BRASIL, TSE, 2019). A autorregulação é desejável para soluções ágeis e boas práticas; a intervenção estatal é indispensável para assegurar direitos fundamentais e coibir abusos. O futuro do ecossistema informacional brasileiro dependerá dessa combinação, que preserva criatividade sem sacrificar a dignidade que a Constituição promete.

Atualização pós-publicação: O texto publicado apresentou o tema de constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet como pendente no STF e explicava o modelo do referido artigo, fundado na reserva de jurisdição: “o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente […] se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para […] tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente” (lei 12.965/14, art. 19, caput), destacando seus efeitos sobre liberdade de expressão e deveres das plataformas. Em 26/6/25, por maioria, o STF declarou a inconstitucionalidade parcial por omissão do art. 19 e redesenhou a responsabilidade: manteve a exigência de ordem judicial para comunicações privadas; adotou notificação e retirada para a maioria dos ilícitos; estabeleceu dever de cuidado diante de riscos sistêmicos; previu presunção de responsabilidade em anúncios/impulsionamento e redes artificiais; impôs representação no Brasil, canais acessíveis e transparência; preservou ordem judicial como regra para honra, com retirada por simples notificação de réplicas idênticas já declaradas ilícitas; efeitos modulados prospectivamente.

_________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Davos, 1996. Disponível em: https://www.eff.org/cyberspace-independence. Acesso em: 15 set. 2025.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 dez. 2012.

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2014.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.037.396, rel. Min. Dias Toffoli, repercussão geral reconhecida. Brasília, DF, s.d.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 23.610, de 18 de dezembro de 2019. Dispõe sobre a propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral. Brasília, DF: TSE, 2019.

CORDEIRO, Rodrigo Aiache; VASCONCELOS, Leonardo Fontes. A Declaração de Independência do Ciberespaço frente ao ordenamento jurídico brasileiro. In: RIBEIRO, Paulo Dias de Moura; ROBERTO, Wilson Furtado; CASELATO, Aline Gomes; VEIGA, Guilherme; SANTOS, Eronides Aparecido Rodrigues (org.). 30 anos da internet comercial no Brasil – Direito digital: uma homenagem à Ministra Nancy Andrighi. Leme-SP: Mizuno, 2025. p. 129–149. ISBN 978-85-7789-731-5.

Rodrigo Aiache Cordeiro
Advogado, possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Acre, especialização em Direito Processual Civil pela PUC/SP e mestrado em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Escreveu os livros "Poder Econômico e Livre Concorrência: uma análise da concorrência na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988" e "Princípios Constitucionais Tributários." Atualmente, ocupa os cargos de Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (Seccional Acre) e de Auditor Vice-Presidente Administrativo do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol.

Leonardo Fontes Vasconcelos
Advogado licenciado, assessor no Ministério Público do Estado do Acre, especialista em Direito Digital e Direito Processual Civil, professor universitário e membro da Academia de Letras Jurídicas do Acre.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025