A imputação penal, enquanto construção jurídica, exige mais do que enunciados doutrinários e categorias tradicionais. Exige um modelo epistemológico que se sustente racionalmente diante dos princípios constitucionais e dos desafios de um Direito Penal garantista. É nesse contexto que as contribuições do segundo Wittgenstein se mostram decisivas. A filosofia da linguagem, em sua vertente analítica, oferece os instrumentos para superar a arbitrariedade dos modelos subjetivistas e para reconstruir a imputação penal a partir da ação significativa, e não de ficções psicológicas.
Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein abandona as pretensões de seu primeiro grande trabalho, o Tractatus Logico-Philosophicus, e reformula de modo radical o papel da linguagem na filosofia e na vida social. Ao contrário do que se sustentava anteriormente, a ideia de que a linguagem funciona como uma representação pictórica do mundo, Wittgenstein passa a defender que o significado não é uma essência que reside nas palavras, mas o uso que se faz delas nos jogos de linguagem que compõem nossas formas de vida.
Esse giro filosófico é decisivo. A linguagem deixa de ser um espelho da realidade para se tornar prática. E essa prática é normada, compartilhada, social. Assim, falar de “dolo”, “imprudência”, “culpabilidade” ou “injusto penal” só faz sentido se essas expressões estiverem inseridas em contextos práticos que lhes conferem significado. A ação humana, nesse sentido, não é um “ato de vontade” que se dá em uma esfera mental isolada, ela é, antes, uma conduta dotada de sentido público, passível de descrição normativa. É por isso que, conforme desenvolvo em minha teoria, a imputação penal deve basear-se nos caracteres significativos e nos quesitos significativos da ação, jamais em suposições psicológicas.
A crítica de Wittgenstein à definição ostensiva da linguagem, tal como formulada por Santo Agostinho, revela exatamente isso. Para Wittgenstein, aprender uma linguagem não é apenas associar palavras a objetos. É participar de uma forma de vida, de um jogo normativo no qual as palavras adquirem sentido apenas por meio de seu uso. A imputação penal, enquanto operação jurídica, é precisamente isso: um jogo de linguagem. Um jogo que deve seguir regras públicas, racionais, verificáveis, jamais presunções intuitivas sobre a interioridade dos sujeitos.
Essa concepção exige uma mudança de paradigma na teoria do delito. É necessário abandonar a busca por elementos volitivos ocultos (a clássica vontade dolosa presumida, por exemplo) e substituí-la por uma análise das manifestações objetivas da ação do agente. Não se trata de ignorar o elemento subjetivo, mas de reformulá-lo. A subjetividade jurídica não pode mais ser entendida como um dado psicológico, mas como um sentido atribuído a uma conduta, conforme sua inserção em um contexto normativo.
Ao adotar essa abordagem, eliminamos o espaço para categorias fictícias como o “dolo eventual”. Essa figura, construída a partir da tentativa de classificar gradações da vontade, não resiste à análise filosófica rigorosa. Se a vontade é o critério do dolo, e se a vontade não admite gradações internas (ou se tem, ou não se tem), então a noção de dolo eventual é logicamente inconsistente. Mais do que isso: ela é dogmaticamente insustentável, pois viola os critérios normativos do próprio jogo de linguagem jurídico.
Wittgenstein nos ensina que não há linguagem privada, e que a significação nasce do uso público. Isso significa que não há “dolo invisível” que o juiz possa presumir com base em sentimentos ou “intuições jurídicas”. A imputação dolosa exige manifestação da vontade de alcançar o resultado típico. Aquilo que for meramente previsto, tolerado ou aceito sem finalidade dirigida, deve ser tratado como imprudência, com a devida classificação normativa, como proponho: imprudência consciente gravíssima, grave ou leve, conforme os critérios da Teoria Significativa da Imputação.
Os jogos de linguagem, portanto, são mais do que uma metáfora. Eles nos oferecem o modelo epistemológico adequado para pensar o Direito Penal como prática normativa. Para cada tipo penal, há um jogo específico: com suas regras, sua forma de vida, seus critérios interpretativos. O jurista, nesse contexto, é aquele que compreende e aplica corretamente as regras desses jogos, reconstruindo os sentidos das ações humanas com base no uso social da linguagem.
Por essa razão, é equivocada qualquer tentativa de extrair do dolo categorias psicológicas, graduáveis ou subjetivamente complexas. Dolo não é um estado mental, é um sentido normativo atribuído a uma conduta. E esse sentido só pode ser reconhecido se houver manifestação clara da vontade típica, dentro do jogo de linguagem jurídico em que a ação se insere.
Wittgenstein, ao afirmar que “seguir uma regra não é acreditar que se está seguindo uma regra”, antecipa um dos maiores problemas do Direito Penal contemporâneo: a confusão entre crença subjetiva e prova objetiva. É exatamente isso que ocorre quando se admite o dolo eventual: presume-se que o agente “assumiu o risco”, mesmo sem manifestação objetiva da vontade. Isso contraria o próprio conceito de seguir uma regra, e compromete a legitimidade da imputação.
Por fim, cabe destacar que a filosofia da linguagem, tal como concebida por Wittgenstein, não serve apenas como fundamento teórico da Teoria Significativa da Imputação. Ela é também um instrumento de resistência ao arbítrio, à opacidade dos discursos jurídicos e à colonização moral da dogmática penal. Substituir a especulação pela descrição, a crença pela norma, a ficção pela linguagem, esse é o caminho que propomos para reconstruir a imputação penal a partir de bases filosóficas sólidas e constitucionalmente legítimas.
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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).