Introdução – breve relato
A responsabilidade de estabelecimentos comerciais por furtos ocorridos em seus estacionamentos é um tema de constante debate no cenário jurídico, reiteradamente abordado pela súmula 130 do STJ, que estabelece a obrigação de reparação por danos ou furtos de veículos. Contudo, a aplicação dessa diretriz e a extensão da indenização, especialmente no que tange aos bens deixados no interior dos veículos e à configuração de danos morais, continuam a ser objeto de cuidadosa análise pelos tribunais.
Recentemente, um caso concreto, julgado pela 3ª vara Cível da comarca de Ribeirão Pires/SP trouxe à tona importantes discussões sobre a prova do dano, a falha na prestação do serviço e a distinção entre dano material e moral. A decisão judicial, embora tenha reconhecido a responsabilidade do estabelecimento e concedido indenização por danos materiais, negou a reparação por danos morais, alinhando-se a uma vertente jurisprudencial que exige mais do que o mero aborrecimento para a configuração do abalo extrapatrimonial.
O caso em análise: Furto de notebook e a falha na segurança
O incidente ocorreu quando o autor, em viagem de trabalho, parou em um estabelecimento comercial numa rodovia do Estado de São Paulo, para um breve descanso. Ao estacionar, o condutor do veículo notou uma falha no travamento remoto, necessitando acionar o dispositivo mais de uma vez. Posteriormente, já em sua residência, constatou-se que o veículo havia sido alvo do conhecido "golpe da chave virgem" ou "bloqueador de sinal", uma técnica criminosa que impede o travamento do automóvel sem que a vítima perceba.
Enquanto o autor e seus acompanhantes utilizavam as dependências do estabelecimento na rodovia, criminosos tiveram acesso ao interior do veículo, subtraindo um notebook de alto valor, que era um instrumento essencial de trabalho, o qual possuía diversos arquivos importantes e insubstituíveis, além de outros pertences que estavam guardados no porta-malas. O furto só foi percebido horas depois, quando o autor chegou em sua residência e buscou pelos itens supracitados.
Ao retornar ao local no dia seguinte para relatar o ocorrido, o autor foi surpreendido pela informação de que a gerência tinha pleno conhecimento da atuação de quadrilhas especializadas na localidade e que furtos semelhantes eram recorrentes. Apesar disso, o estabelecimento não possuía um sistema de segurança adequado, nem vigilantes ou tomava qualquer providência para evitar os furtos recorrentes no local, ademais o gerente se recusou a fornecer as imagens das câmeras de segurança ou qualquer resolução amigável para o problema.
Diante da recusa e da omissão do estabelecimento, o autor buscou a via judicial, pleiteando indenização por danos materiais, referentes ao valor do notebook furtado (avaliado em R$ 3.813,90), e por danos morais, em razão da frustração, insegurança e perda de um instrumento vital para suas atividades profissionais, o qual possuía material intelectual insubstituível.
A dinâmica processual: Prova, responsabilidade e a recusa das imagens
A ação de indenização, registrada sob o processo 1001485-84.2025.8.26.0505, foi proposta com base na responsabilidade objetiva do estabelecimento, conforme o CDC e a súmula 130 do STJ. Inicialmente, um pedido de tutela de urgência para o depósito do valor do notebook foi indeferido pelo juízo, sob o fundamento de que não havia, naquele momento processual, a certeza necessária da "probabilidade do direito" para a antecipação da indenização.
Em resposta, o autor apresentou uma emenda à inicial, requerendo a inversão do ônus da prova e a determinação judicial para que a Ré apresentasse as filmagens do estacionamento do dia do furto. O magistrado, após análise, acolheu o pedido de exibição documental, determinando que a Ré juntasse as filmagens no prazo de cinco dias, sob pena de arcar com o ônus processual respectivo, mas sem estabelecer multa diária, em observância ao Tema 1.000 do STJ.
Em sua contestação, a ré alegou a impossibilidade de apresentar as gravações, justificando que o sistema de armazenamento retinha as imagens por apenas sete dias, sendo sobrepostas após esse período. Argumentou que a solicitação do autor ocorreu fora desse prazo. No mérito, o estabelecimento contestou sua responsabilidade, afirmando que o dever de guarda se limitaria ao veículo, não se estendendo aos objetos deixados em seu interior, dos quais não tinha conhecimento. Sustentou a ausência de provas do furto e de que este teria ocorrido em suas dependências, além de defender que a segurança pública é dever do Estado. Por fim, impugnou o pedido de danos morais, classificando-o como "mero aborrecimento" e alegando que o autor não era "hipossuficiente" para fins de inversão do ônus da prova.
Em réplica, o autor reafirmou a responsabilidade objetiva do estabelecimento comercial, destacando a "confissão" da ré de que não mantinha vigilância no estacionamento como um agravante da falha na prestação do serviço, eis que notoriamente sabia da ação dos infratores no local de forma recorrente. Enfatizou que a recusa em fornecer as imagens, quando solicitadas tempestivamente (um dia após o furto, dentro do prazo de 7 dias alegado pela própria Ré), impedia a produção da principal prova e reforçava a necessidade da inversão do ônus da prova.
A sentença: Responsabilidade objetiva confirmada, danos morais afastados
A sentença, proferida pelo magistrado, julgou parcialmente procedentes os pedidos do autor.
O julgador confirmou a aplicação do CDC e da súmula 130 do STJ, reiterando a responsabilidade objetiva do estabelecimento comercial como fornecedor de serviços. Destacou que o boletim de ocorrência corroborava as alegações do autor e gozava de presunção de veracidade, não tendo sido infirmado pela ré.
Um ponto crucial da decisão foi a análise da impossibilidade da ré em apresentar as filmagens. O juízo ressaltou que, diante dos diversos fatos similares ocorridos em seu estabelecimento (conforme alegado pelo autor e corroborado por julgados citados pela própria Ré), incumbia à empresa garantir a manutenção das gravações por um tempo mínimo que permitisse afastar sua responsabilidade. A dificuldade de produção da prova, neste caso, recaía sobre a Ré, que detinha o controle do sistema de gravação.
Com base na nota fiscal do notebook e na presunção de veracidade dos fatos não contestados eficazmente pela ré, o juízo condenou o estabelecimento ao pagamento de R$ 3.813,90 a título de danos materiais, valor a ser atualizado pela taxa Selic desde a data do evento danoso.
Contrariamente ao pedido do autor, o juízo indeferiu a indenização por danos morais. Fundamentou que, embora o dano material fosse evidente, a situação não configurava um abalo extrapatrimonial que extrapolasse o "mero dissabor, aborrecimento, mágoa ou irritação inerentes à vida em sociedade". A decisão citou jurisprudência que entende que o furto de bens em estacionamento, por si só, sem reflexos concretos que configurem grave violação aos direitos da personalidade, não enseja dano moral indenizável.
A negativa dos danos morais, embora comum em casos de "mero aborrecimento", contrasta com algumas decisões que, em situações análogas, reconhecem o abalo moral.
No caso em tela, observa-se que o dano moral não reside na perda do objeto, ou apenas na falta de segurança, mas sim na perda de bens imateriais que estavam dentro do dispositivo roubado, os quais são propriedade intelectual do autor e não tem valor calculável. Embora, tenha argumentado nesse sentido, o magistrado não concedeu os danos morais.
Apesar do resultado concreto, a jurisprudência tem evoluído para analisar a "legítima expectativa de segurança" do consumidor e o impacto do evento na sua esfera íntima. No caso em tela, o juízo entendeu que a perda do notebook, embora materialmente reparada, não gerou um sofrimento ou humilhação que justificasse a indenização moral, classificando-o como um "dissabor não indenizável". Essa distinção é crucial e demonstra a necessidade de uma análise casuística e da comprovação de que o evento transcendeu o mero aborrecimento, como no caso, apesar de não reconhecido pelo magistrado.
Conclusão
A decisão neste caso reafirma a sólida proteção do autor em face da responsabilidade objetiva dos estabelecimentos comerciais por furtos em seus estacionamentos. A condenação por danos materiais, baseada na falha do dever de segurança e na ausência de provas eficazes por parte da ré, serve como um alerta para que as empresas invistam em sistemas de vigilância e gestão de evidências, além de garantir a segurança dentro de seus estabelecimentos comerciais, inclusive nos estacionamentos, eis que fazem parte do estabelecimento.
Por outro lado, a negativa dos danos morais sublinha a exigência de uma demonstração clara de que o sofrimento ou abalo psicológico transcendeu o ordinário, não se confundindo com meros dissabores do cotidiano. Este caso, portanto, é um valioso precedente para a compreensão da extensão da responsabilidade civil em situações de furto em estacionamentos, delineando os limites entre a reparação patrimonial e a extrapatrimonial no âmbito das relações de consumo. A análise aprofundada da prova e a ponderação sobre a real extensão do abalo sofrido pelo autor são elementos centrais para a justa resolução de conflitos dessa natureza.
________
l Processo nº 1001485-84.2025.8.26.0505