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Nulidade parcial da decisão cautelar na ADPF 1.178

STF limita jurisdição estrangeira sobre municípios, mas ao estender decisão ao SFN ultrapassa o pedido inicial e gera debate sobre nulidade.

29/9/2025

Na ADPF 1.178, o IBRAM - Instituto Brasileiro de Mineração, alegando que determinados municípios brasileiros, valendo-se de interpretação manifestamente inconstitucional a respeito do alcance de sua própria autonomia, têm renunciado à imunidade de jurisdição de que goza o Estado brasileiro, com o propósito de litigarem perante o Poder Judiciário de outros Estados soberanos, pleiteou medida cautelar monocrática, ad referendum do Plenário, para determinar uma série de providências voltadas ao resguardo das normas constitucionais alegadamente infringidas.

O proeminente relator, ministro Flávio Dino, ao conhecer do pedido de tutela cautelar, concluira, quando da propositura da ADPF, inexistir urgência de provimento judicial mais exauriente acerca dos temas levados à apreciação do STF. Contudo, retomando há pouco o exame do processo, em função de determinação de sua suspensão, expedida por tribunal do Reino Unidos, houve por bem proferir decisão, em 18 de agosto de 2025, ainda em sede cautelar, afirmando que “nesse período de pouco mais de um ano, o suporte empírico dessa controvérsia se alterou significativamente, sobretudo com o fortalecimento de ondas de imposição de força de algumas Nações sobre outras. Com isso, na prática, têm sido agredidos postulados essenciais do Direito Internacional. Instituições do multilateralismo são absolutamente ignoradas. Tratados internacionais são abertamente desrespeitados, inclusive os que versam sobre a proteção de populações civis em terríveis conflitos armados, alcançando idosos, crianças, pessoas com deficiência, mulheres. Diferentes tipos de protecionismos e de neocolonialismos são utilizados contra os povos mais frágeis, sem diálogos bilaterais adequados ou submissão a instâncias supranacionais.

No dia seguinte, com o propósito de esclarecer a diferença conceitual entre “tribunais estrangeiros” e “tribunais internacionais”, proferiu despacho asseverando que a decisão em apreço “...reitera conceitos básicos e seculares, destinada a proteger o Brasil - abrangendo suas empresas e cidadãos - de indevidas ingerências estrangeiras em nosso território1.

Essa “semelhança”, parece claro, deve verificar-se entre as situações fáticas alcançadas por tais comandos e as demais hipóteses em que jurisdição estrangeira - ou outro órgão de Estado estrangeiro - pretenda impor, no território nacional, atos unilaterais por sobre a autoridade dos órgãos de soberania do Brasil.  Até aí, ateve-se a decisão aos limites do pedido formulado na ADPF. Todavia, invocando uma “alteração do suporte empírico da ação”, S. Exa. houve por bem ordenar expressamente a notificação das entidades integrante do Sistema Financeiro Nacional “para que observem a decisão de modo a evitar uma série de operações determinadas por Estado estrangeiro”, sem, contudo, esclarecer em que consistiriam tais “operações determinadas por Estado estrangeiro”, e por que o comando de “observância da decisão” se restringe às entidades componentes do SFN, sem alcançar as demais entidades nacionais com objetos sociais distintos . 

Com o respeito devido a S. Exa., não nos parece que qualquer dos fatos ou conjunturas fáticas invocados pela decisão, e que, segundo ela, teriam surgido supervenientemente2 à anterior, de um ano atrás, apresenta qualquer relação lógica com o arcabouço fático-jurídico que embasa o pedido formulado pelo IBRAM na ADPF e que com este arcabouço sejam “semelhantes”. Bem por isso, o presente artigo objetiva analisar essa decisão à luz do direito processual, sem entrar em considerações específicas acerca dos aspectos políticos, sociológicos, diplomáticos, militares, inclusive quanto à desproteção de populações civis em terríveis conflitos armados,  alcançando idosos, crianças, pessoas com deficiência, mulheres,  e de outro jaez3 que, segundo o ministro, “formam um conjunto de fatos e circunstâncias que alterou significativamente o suporte empírico da controvérsia sob exame na ADP”. 

Neste passo, salvo melhor juizo, cabem duas considerações: a decisão não esclarece qual a “semelhança” jurídica vislumbrada entre a situação de uma entidade detentora de parcela da soberania nacional, e que venha a se sujeitar à jurisdição estrangeira, e entidades privadas do Sistema Financeiro Nacional, que, exatamente por serem privadas, não detêm parte da soberania nacional, e que, assim se imagina,  são livres para agir como melhor lhes convier, desde que observem a Constituição e as leis brasileiras, devidamente aprovadas pelo Congresso Nacional, e que compõem o conceito de soberania nacional.  Qual a razão de serem colocadas no mesmo balaio? Afinal de contas, como ensinavam os jurisconsultos romanos, “parca differentia facti magna inducit diversitatem juris” (pequena diferença de fato implica grande diversidade do direito).

A análise da decisão permite constatar que contém dois capítulos distintos: um, que afirma a impossibilidade constitucional de municípios brasileiros invocarem jurisdição estrangeira para conhecimento e solução de conflitos nos quais estejam envolvidos, capítulo este que se mantém dentro dos lindes do pedido formulado, pelo que é processualmente válido: respeita o princípio da congruência ou da adstrição ao pedido que delimita a esfera dentro da qual pode o juiz agir, normatizado pelo disposto no art. 141 do CPC, sendo inquestionável que, dentro desses limites, proferida que foi em ADPF, produz efeitos não apenas em relação às partes, mas a todos quantos estejam sujeitos à jurisdição do STF (eficácia “erga omnes”), mesmo que, dentro dessa esfera de competência, possam ter sido suscitadas e decididas questões incidentais (“incidenter tantum”) ao lado da principal (“principaliter”). Já o segundo capítulo diz respeito a uma questão distinta, relativa a uma hipotética imposição ao Brasil, por Estado estrangeiro, seja de decisão judicial, seja de ato legislativo, seja de ato administrativo, sem a placitação da juridição brasileira, que violaria a soberania nacional. 

Sucede, porém, que, o comando judicial constante do segundo capítulo não corresponde a um pedido da parte, e nem consubstancia uma questão incidental ao pedido ensejador do primeiro capítulo, mas pretende responder a uma alegação suscitada de ofício pelo próprio ministro relator, consistente na “alteração significativa do suporte empírico da ação”. Com efeito, suplantando os limites da lide, estabelecidos pelo pedido formulado na ADPF, a decisão, num movimento taumatúrgico, concebe, de ofício, uma situação hipotética, que, caso concretizada numa lide, consubstanciaria uma causa de pedir distinta da que originou o pedido formulado pelo IBRAM. Esse quadro configura o vício conhecido como “extra petita” (fora do pedido). Se, entre nós, o direito constitucional processual a aplicar é o brasileiro, esse capítulo da decisão é flagrantemente nulo de pleno direito, uma vez que é vedado ao juiz estender a decisão, mesmo que cautelar, para além dos limites fixados pelo pedido. O STF pode muito, mas não pode tudo.

Além do aspecto eminentemente processual, considere-se que, ao suscitar de ofício a “questão”, determinando que o sistema financeiro nacional a “observe”, tem-se a impressão, salvo melhor juízo, de que o segundo capítulo foi nela foi introduzido com o intuito de impedir a eficácia, no território brasileiro, da lei norte-americana conhecida como “lei Magnitsky”. Todavia, quer parecer despicienda essa preocupação, na medida em que, exatamente por se tratar de lei estrangeira, não incorporada no sistema jurídico nacional com base em tratado, não pode mesmo ter aplicação no Brasil. Logo, tentar impedir venha a “lei Magnitsky” a afetar cidadãos brasileiros teria o mesmo sentido da luta do cavaleiro da triste figura contra moinhos de vento. Não é que ela não possa alcançar um cidadão brasileiro, porém seus efeitos só serão eficazes nos Estados Unidos e, eventualmente, em outros países com os quais aquele haja firmado tratado prevendo tal hipótese. No entanto, por outro lado, a jurisdição brasileira não tem como impedir que o patrimônio jurídico do brasileiro, localizado fora do Brasil, seja atingido.

Seja como fôr, não se trata, na hipótese do segundo capítulo, de subsunção normativa com amparo em fundamentos jurídicos diversos dos suscitados pelas partes (“da me facto, dabo tibi jus”), mas da extensão da decisão a matéria externa àquela fixada pelo pedido, o que entre nós é absolutamente vedado, nos estritos termos do que dispõe o art. 141 do CPC. O juiz, no Brasil, responde, não provoca, ao contrário do que ocorria no direito soviético, no qual o juiz tinha o poder de agir de ofício, ou seja, podia iniciar, conduzir e decidir processos independentemente de provocação das partes, tanto na esfera cível quanto na criminal. Esse traço do sistema jurídico soviético está ligado ao modelo inquisitório de processo e ao papel do Estado no socialismo real, uma vez que o Estado soviético não via o direito privado como uma arena de interesses individuais, mas como uma extensão dos interesses coletivos e do planejamento estatal. Isso refletia a ideologia socialista que via o processo como um instrumento de realização dos interesses do Estado e não como meio de resolução de litígios entre partes. Assim, o juiz também podia agir de ofício para “proteger os interesses do Estado, da coletividade ou do "interesse público socialista", mesmo que nenhuma das partes tivesse solicitado determinada medida4.

_________

1 E aproveitou para lembrar que “... é reconhecida característica da política externa brasileira o compromisso com o multilateralismo e, portanto, com a busca de  soluções concertadas para desafios globais no âmbito de organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial de Comércio (OMC), a Organização Mundial de Saúde (OMS), entre outras”, relembrando, também, que “...o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha presidiu a Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947, como símbolo dessa tradição de diálogo da qual o Brasil -- diferente de outros países -- jamais se afastou”. Sim, é verdade, jamais se afastou, porém – cabe complementar -- enquanto o Ministério das Relações Exteriores foi comandado por estadistas.

2 Não, fatos supervenientes (novos) não autorizam o juiz a decidir fora dos limites do pedido da parte, pois o princípio da congruência (art. 141 do CPC) veda julgamentos que extrapolem ou estejam aquém do que foi pedido. A decisão judicial deve estar restrita ao que as partes postularam, sob pena de ser considerada extra petita ou ultra petita. 

3 Haveria acaso conflitos não “terríveis” e que não atingissem homens jovens e saudáveis?

4 Andrei Vyshinsky, jurista e político soviético, foi um dos principais teóricos do sistema jurídico da URSS e defensor da ideia de que o processo era um instrumento de política de Estado. Costuma-se atribuir a ele a frase: “mostrem-me o homem e encontrarei o crime”.

Lionel Zaclis
Advogado do escritório Azevedo Sette Advogados.

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