Migalhas de Peso

Espetacularização do mundo da vida: Entre autonomia da vontade e intervenção estatal

Da “bigbrotherização” ao risco da superexposição, o artigo debate autonomia, cidadania digital e os dilemas de intervir no palco social.

30/9/2025
Publicidade
Expandir publicidade

Ser é ser visto

Na era da superexposição e do espetáculo, cada pedaço da nossa vida parece querer transbordar para os olhos alheios. Nesse cenário, a diferença entre “ser” e “ser visto” é cada vez menor - ou, ao menos, essa é a sensação que somos levados a ter.

A espetacularização da vida não é algo novo, já havia sido relatada na consagrada obra de Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo, ainda nos idos de 1967. Porém, com a virtualização de nossas vidas, o fenômeno cresceu de forma exponencial, produzindo efeitos deletérios ainda não totalmente medidos, que podem vir a ultrapassar até mesmo as previsões mais negativas.

Se antes a exposição era consequência do destaque, hoje é o ato de se expor que nos confere notoriedade. E aquilo que nos diferencia dos demais - tornando-nos mais atrativos à exposição - é tanto a disposição de sermos vistos quanto a vida privilegiada que ostentamos diante da plateia.

Byung-Chul Han, em A Sociedade da Transparência, lembra que a compulsão contemporânea pela exposição não gera, necessariamente, mais confiança ou reconhecimento: ao contrário, muitas vezes multiplica o vazio e a solidão. O ser só parece existir quando é visto - e esse ver, quando se torna imperativo, corrói a experiência autêntica de si.

Influenciar é encenar

Os chamados influenciadores de lifestyle - dentre todos os tipos de produtores de conteúdo virtual - descobriram a fórmula perfeita de monetizar a publicidade de uma vida exclusiva: carros caros, jatos, luxo. Seus seguidores assemelham-se àquelas pessoas que antes ficavam do lado de fora da corda de segurança, assistindo aos famosos passarem pelo tapete vermelho nos grandes eventos. Mas, nos tempos atuais de superexposição, o tapete vermelho é a própria vida da celebridade, exibida e compartilhada em quase todos os seus momentos.

Quase todos - porque nem tudo pode ou deve ser mostrado. Só interessa o que gera frutos e dividendos.

O nada que vira profissão: A distinção entre vida inútil e vida fútil

Ao transformarem o nada em dinheiro, os influenciadores colocaram em prática - ainda que de forma distorcida - a ideia de Ailton Krenak de uma vida além do trabalho. Fizeram do não fazer nada sua profissão e, assim, passaram a lucrar com a divulgação de vidas aparentemente inúteis.

Mas sabemos que não é esse tipo de “vida inútil” que Krenak nos propõe como alternativa à ótica da produção e do trabalho. Vida inútil não é sinônimo de vida fútil - e essa diferença é fundamental. Para Krenak, vida inútil é viver a experiência rica da existência. Já a vida fútil tem mais a ver com transformar essa mesma experiência em encenação para pronto consumo.

Curioso notar que essa vida de luxo e exclusividade ganha significado não pela experiência de quem a vive, mas pelo olhar de quem a observa.

O valor está na plateia

Isso nos faz pensar que a exclusividade só existe diante da percepção de sua ausência. E essa percepção só é possível diante da plateia. Sem ela, exclusividade não é privilégio - é solidão. Basta pensar nos “influencers” da vida, reclusos em seus castelos, usufruindo de todos os privilégios, mas sem o olhar dos seguidores a reforçar a beleza de suas vidas.

Em Sociedade do Cansaço, Han mostra como a pressão não vem mais apenas de fora, mas se instala dentro do indivíduo, que passa a se autoexplorar em busca de desempenho e reconhecimento. Assim, a exclusividade sem plateia não é apenas solidão social, mas também psíquica: viver para se mostrar torna o sujeito explorador e explorado de si mesmo.

Diga-se, ainda, que o vazio que se aponta não está na pessoa do influenciador em si - não se trata de uma crítica pessoal -, mas, sim, no significado da imagem que se cria e ostenta. Perigoso é quando o “ser” e esse personagem querem se fazer uma coisa só. Aí mora o perigo da perda do que temos de mais substancial.

E, se de um lado, validamos a personagem que se cria com a fama e sucesso, dela também nos alimentamos, por meio de sonhos e esperanças de uma vida que não é nossa, mas que, de algum modo, invejamos ou admiramos, como algo bom.

A fama como denúncia: A dualidade entre bom e o ruim da superexposição

A fama e a popularidade podem, em certas circunstâncias, ser bem-vindas. O influenciador tem o poder de engajar seu público em torno de boas causas e despertar reações sociais relevantes. Exemplo disso foi a publicação do influenciador Felca, que denunciou a adultização de crianças e adolescentes na internet. O vídeo gerou tamanha repercussão que resultou não apenas na prisão de outro influenciador, mas também impulsionou a tramitação no Congresso Nacional de um projeto de lei apresentado em 2022, que antes seguia sem grandes movimentações, mas agora segue em regime de urgência. Já aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto segue para apreciação do Senado Federal.

Esse episódio evidencia, de forma clara, a dualidade do excesso de exposição: de um lado, jovens sendo indevidamente expostos, inclusive por seus próprios pais, fenômeno que de tão frequente recebeu até nome - oversharenting -; de outro, a possibilidade de que essa mesma visibilidade sirva como instrumento de denúncia e de mobilização social.

Seguidores: O potencial dos financiadores invisíveis

Acreditamos que os influenciadores de lifestyle que acabam se identificando com a personagem que divulgam enfrentariam sérios dilemas existenciais diante do vazio cotidiano, não fossem os seguidores constantemente a dizer-lhes como suas vidas são lindas, invejáveis, desejadas.

Faria sentido, portanto, que os seguidores cobrassem pela atenção que concedem aos influenciadores. Afinal, estes só existem porque dedicamos tempo ao conteúdo que produzem.

Hoje, no entanto, apenas as plataformas e os influenciadores são remunerados nessa equação. Os seguidores entregam seus dados, seu tempo e sua atenção - de graça - para manter as engrenagens das redes sociais em movimento. Isso sem falar no prejuízo para suas saúdes mentais e financeiras: basta pensar na já reconhecida “epidemia” de vício em jogos virtuais no Brasil, certamente agravada pela profusão de propaganda e estímulos a que somos expostos quase ininterruptamente. Ainda que nem todos esses estímulos estejam restritos à internet, não há como negar que ela se tornou o canal mais eficaz para infiltrar-se em nossos cotidianos e mentes, pelo simples fato de ser onde passamos boa parte do nosso tempo.

Já passou da hora de os usuários reivindicarem mais responsabilidade e mais retorno por parte dos influenciadores e das redes sociais. A este respeito, o STF, em recente decisão (RE 1.037.396 e RE 1.057.258), definiu bases para responsabilização legal de plataformas digitais por conteúdos veiculados, aliás um tema que será assunto de um próximo artigo nosso. Não se trata aqui de debater o alcance jurídico deste julgado, mas sim algo ainda mais elementar e prévio: a tomada de consciência de cada um de nós sobre o papel que ocupamos e o poder que temos nesse ecossistema digital. É entender, cada vez mais, que não somos só plateia, mas atores neste teatro social. Isso exige participação ativa.

Byung-Chul Han, em Psicopolítica, alerta que o poder atual já não opera pela repressão, mas pela sedução: acredita-se escolher livremente, mas muitas vezes apenas se reproduzem padrões de controle invisíveis. A consciência desse mecanismo é condição para que nossa autonomia digital não se converta em mais uma forma de sujeição.

Somos capazes, individual e coletivamente, de impulsionar, restringir, produzir ou silenciar conteúdos com simples gestos e medidas cotidianas. Essa autonomia nos confere ao mesmo tempo um poder e um dever, pois somos responsáveis, em parte, por fomentar bons e maus conteúdos e publicações. E tudo isso sem necessidade de leis, nem juízes. A tutela jurisdicional continuará sendo uma garantia essencial do cidadão, mas, antes dela, é possível exercer uma cidadania ativa, inclusive, no ambiente digital. Afinal, o parágrafo único do art. 1º da CF/88 assegura que todo o poder emana do povo, garantido a participação cidadã tanto no mundo de carne e osso quanto no universo virtual. Se exclusividade sem plateia é solidão, então chegou a hora de os seguidores exigirem sua parte no espetáculo.

Autores

Pedro Sobrino Porto Virgolino Doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV. Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Estado do Espírito Santo. Procurador do Estado do Espírito Santo. Advogado.

Nelson Camatta Moreira Pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Doutor e mestre em Direito pela Unisinos-RS. Professor do PPGD-FDV. Pesquisador PQ-FAPES. Advogado.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos