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A desvirtuação da representação no estelionato pós-pacote anticrime: Uma crítica à jurisprudência que desconsidera a vontade da vítima

A alteração do Pacote Anticrime condicionou o estelionato à representação da vítima, mas decisões recentes têm relativizado essa exigência legal.

1/10/2025

A lei 13.964/19, conhecida como "Pacote Anticrime", inaugurou um novo paradigma no processamento do crime de estelionato (art. 171 do CP). Desde 23 de janeiro de 2020, o delito deixou de ser de ação penal pública incondicionada para se tornar, via de regra, de ação penal pública condicionada à representação da vítima, conforme expresso no §5º do referido art.

Essa alteração legislativa, que buscou alinhar-se a uma política criminal de minimalismo penal, direciona o interesse da persecução penal para a vontade do ofendido, como bem observado por Guilherme de Souza Nucci.

“nos parece válida, em relação à política criminal calcada no direito penal mínimo. Para que possa processar e punir o estelionatário, passa-se a demanda ao interesse da vítima”1

No entanto, uma corrente jurisprudencial tem se mostrado complacente em aceitar processar o crime de estelionato sem a devida representação formal ou, o que é mais grave, sem uma inequívoca manifestação de vontade da vítima, desvirtuando completamente o propósito do legislador.

A representação criminal, instituto de natureza híbrida presente tanto no CP (art. 107, IV) quanto no CPP (arts. 24 e 38), configura- se como a manifestação de vontade do ofendido ou de seu representante legal, autorizando o início da persecução penal. Sem essa permissão expressa ou tácita, tanto a autoridade policial quanto o Ministério Público ficam impedidos de agir, caracterizando uma condição de procedibilidade da ação penal.

A doutrina e a jurisprudência são unânimes em asseverar que a representação não exige forma sacramental, bastando que a vontade de representar esteja claramente evidenciada, seja de forma expressa (por exemplo, uma declaração escrita) ou por conduta tácita da vítima, como o comparecimento pessoal à Delegacia de Polícia ou ao Ministério Público para requerer a apuração dos fatos e manifestar o desejo de ver o ofensor processado.

A crítica central reside na jurisprudência que, ao invés de exigir essa inequívoca manifestação de vontade, tem se valido de documentos meramente informativos, como a lavratura de um Boletim de Ocorrência ou simples petições de informações, para "forçar" o reconhecimento de uma representação que, em verdade, nunca existiu.2

Essa prática representa uma violação direta ao preceito do art. 171, §5º, do CP, pois esvazia o instituto da representação de seu sentido e finalidade. A intenção do legislador, ao condicionar a ação penal à representação, não foi meramente formalizar o registro do crime, mas sim conceder à vítima a autonomia para decidir se deseja ou não a movimentação da máquina judiciária contra o estelionatário.

Admitir a procedibilidade da ação penal de estelionato baseando-se apenas em um boletim de ocorrência que notifica o crime ou em uma petição que presta informações básicas, sem que haja uma clara expressão de vontade da vítima em representar, marginaliza o instituto da representação. Ao assim proceder, ele perde sua força distintiva e se torna indistinguível de outros crimes patrimoniais que não exigem tal formalidade, como o furto ou a apropriação indébita. A representação, seja ela expressa ou tácita, demanda uma atitude proativa do ofendido que sinalize seu interesse na persecução penal, e não apenas o mero conhecimento do fato pela autoridade.

A relevância de se exigir uma representação legítima é corroborada por recentes decisões que, felizmente, aderem à estrita observância da lei. O TJ/SP, em julgado recente (TJ/SP; apelação criminal 1505698-25.2021.8.26.0438; relator: Renato Genzani Filho; Órgão julgador: 11ª Câmara de Direito Criminal; Data do Julgamento: 13/3/2024;), reconheceu a decadência do direito de representação em caso de estelionato, extinguindo a punibilidade da ré justamente pela ausência de manifestação da vítima no prazo legal. Nesse caso, o crime ocorreu já na vigência do Pacote Anticrime, e a vítima não se enquadrava nas exceções do art. 171, §5º, incisos I a IV, que permitiriam a ação incondicionada. A decisão reforça a tese de que a mera notificação do crime à Autoridade Policial ou a prestação de informações em autos não se equipara à vontade de representar, sendo imperiosa a expressão da vítima nesse sentido.

Em suma, a correta aplicação do art. 171, §5º, do CP exige que o Poder Judiciário e o Ministério Público observem rigorosamente a condição de procedibilidade da representação. Ignorar a necessidade de uma inequívoca manifestação de vontade da vítima em representar, aceitando documentos meramente informativos como substitutos, não apenas desrespeita a intenção do legislador e a política criminal adotada, mas também compromete a segurança jurídica e a autonomia do ofendido na esfera penal. A representação expressa ou tácita é um pilar fundamental para a persecução penal do estelionato e sua desvirtuação enfraquece todo o sistema de justiça criminal.

________

1 NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote Anticrime comentado. 1ª Edição. Editora Gen Forense. P. 32/33.

2 Vide por exemplo: STJ, REsp n. 1.485.352/DF, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª turma, julgado em 25/11/2014; STJ, REsp n. 2.097.134/RJ, rel. Min. Sebastião Reis Júnior.

Fábio Paiva Gerdulo
Advogado. Fundador do escritório Fábio Paiva Gerdulo Advogados. Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP (COGEAE).

Diego Eneas Garcia
Advogado. Fundador do escritório Enéas Garcia Advogados. Especialista em Direito Penal Econômico pela FGV-SP.

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