Vivemos na chamada “era da hiperconexão”, em que dispositivos digitais acompanham cada instante do cotidiano: o trabalho, o lazer, as relações sociais e até mesmo a saúde. Smartphones, aplicativos e plataformas digitais moldam comportamentos e decisões, muitas vezes de forma invisível.
Mas a provocação da futurista lituana Monika Bielskyte lança luz sobre um dilema que não pode mais ser ignorado: “é urgente reconectar a tecnologia à vida”.
Essa afirmação, aparentemente simples, carrega uma crítica profunda ao modelo atual de desenvolvimento tecnológico, marcado pela lógica da extração de dados, da manipulação de comportamentos e da maximização do lucro em detrimento da diversidade cultural, da inclusão social e da sustentabilidade. O problema não é a tecnologia em si, mas o modelo de negócios que a governa.
O que significa um “futuro tóxico”?
Bielskyte alerta para a construção de um “futuro tóxico”, ou seja, um cenário em que a inovação deixa de servir ao bem-estar coletivo e passa a reforçar vícios digitais, alienação social e desigualdades.
O dado mais emblemático vem da pesquisa da DataReportal (2023): o tempo médio diário de uso de internet no Brasil é de 9 horas e 32 minutos, enquanto a média global é de 6 horas e 37 minutos. Isso significa que o brasileiro passa quase 40% do seu dia acordado conectado a algum dispositivo digital.
Esse excesso de exposição não é neutro. Estudos da OMS - Organização Mundial da Saúde apontam que 6% da população mundial já sofre de dependência digital, com impactos graves em saúde mental, ansiedade, depressão e isolamento social. Em países como o Japão, termos como hikikomori (reclusão social extrema ligada ao uso da tecnologia) tornaram-se fenômenos socioculturais.
A promessa não cumprida da tecnologia
Durante a transição para a chamada 4ª Revolução Industrial, acreditava-se que a digitalização traria mais liberdade, tempo livre e aumento da qualidade de vida. O que se observa, porém, é o contrário: profissionais constantemente conectados, jornadas invisíveis de trabalho remoto e dificuldade de desconexão.
De acordo com pesquisa da Microsoft Work Trend Index (2022), 48% dos trabalhadores globais afirmam sentir-se esgotados pelo excesso de reuniões online e mensagens digitais. No Brasil, o índice é ainda mais preocupante: 57% dos entrevistados relataram fadiga digital.
O que deveria ser uma ferramenta de apoio à produtividade transformou-se em uma armadilha de sobrecarga. Essa é a essência da crítica de Bielskyte: a tecnologia, em vez de regenerativa, está se tornando degenerativa.
Tecnologia regenerativa: o que significa?
Ao propor o conceito de tecnologia regenerativa, Bielskyte se refere ao desenho de sistemas digitais que se alinham às necessidades humanas, ao meio ambiente e à diversidade cultural. Não basta “não prejudicar”, é necessário que a inovação contribua positivamente para a qualidade de vida coletiva.
Isso envolve três dimensões:
1. Diversidade e inclusão
Saúde e autonomia
A tecnologia deve ampliar a autonomia das pessoas, não reduzi-las a dependentes de plataformas. Um relatório da UNICEF (2021) mostrou que 71% dos adolescentes latino-americanos afirmam sentir-se pressionados a estar sempre online, sob pena de exclusão social. Isso gera efeitos psíquicos profundos, principalmente em fases de formação da identidade.
2. Sustentabilidade
A digitalização também tem impacto ambiental. O setor de tecnologia da informação já responde por 3,7% das emissões globais de gases de efeito estufa, de acordo com relatório da Shift Project (2020). Ou seja, a busca por “nuvem ilimitada” tem consequências muito concretas para o planeta.
O setor jurídico diante da urgência digital
Se há um setor em que a pressão por digitalização se intensificou nos últimos anos, este é o jurídico. Processos eletrônicos, tribunais digitais e escritórios de advocacia orientados por softwares de gestão transformaram radicalmente a rotina da advocacia.
O Relatório Justiça em Números (CNJ, 2022) mostra que 96% dos processos no Brasil já tramitam em formato eletrônico. Isso coloca o país entre os líderes mundiais em digitalização judicial. Contudo, também gera novos desafios: sobrecarga de informações, vigilância sobre prazos e métricas que, em vez de humanizar, podem intensificar pressões.
Um levantamento da OAB (2021) revelou que 68% dos advogados afirmam que a digitalização aumentou o volume de trabalho, em vez de reduzi-lo. Ou seja, a tecnologia está sendo aplicada mais como mecanismo de cobrança e controle do que de apoio e simplificação.
Proposta de reconexão
É nesse cenário que surge a relevância de modelos alternativos, que buscam reconectar a tecnologia à vida profissional.
Diferentemente de soluções que reforçam a lógica da alienação digital, a proposta é utilizar a automação para libertar o advogado do excesso de tarefas repetitivas e permitir foco em atividades de maior valor humano: análise crítica, estratégia jurídica, empatia no atendimento e inovação na solução de conflitos.
Filosofia crítica e o papel do Direito
O debate proposto por Bielskyte dialoga com reflexões já presentes em pensadores como Adorno, Horkheimer e Habermas. Se no século XX a crítica era à indústria cultural que padronizava subjetividades, hoje precisamos denunciar a indústria digital que captura atenção e manipula desejos.
O Direito, nesse contexto, não pode se limitar a acompanhar a digitalização, mas deve assumir um papel ativo na proteção contra abusos. Questões como proteção de dados (LGPD), regulação da inteligência artificial e direitos digitais já estão no centro da agenda jurídica contemporânea.
Assim como no passado o Direito regulou as condições de trabalho durante a Revolução Industrial, hoje é chamado a regular os impactos da Revolução Digital.
Quando Monika Bielskyte afirma que “é urgente reconectar a tecnologia à vida”, ela não faz apenas um alerta, trata-se de um imperativo civilizatório. A tecnologia pode ser emancipatória ou alienante, regenerativa ou tóxica.
O rumo que se tomará depende das escolhas que fazemos hoje.
No setor jurídico e empresarial, adotar tecnologia não pode ser apenas uma decisão de eficiência operacional, mas sobretudo ética. Cada software contratado, cada sistema implementado, cada política digital adotada molda o modo como nos relacionamos, trabalhamos e construímos o futuro.
Reconectar a tecnologia à vida é, portanto, uma tarefa que exige coragem para questionar, ética para escolher e visão para inovar com propósito humano. Esse é o verdadeiro desafio de nossa geração.