Desde o ano de 2021, magistratura e advocacia, tem como desafio uma atuação jurisdicional pautada nas diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ. Este desafio se complexificou com os Protocolos para Atuação e Julgamento na Justiça do Trabalho do TST.
Esses instrumentos nos convidam a pensar a função jurisdicional como espaço de não repetição de estereótipos e preconceitos, de ruptura com culturas discriminatórias que por muito tempo marcaram a interpretação do direito em nosso país. O CNJ reconhece que patriarcado, machismo, sexismo, racismo e homofobia atravessam todas as áreas do direito, inclusive o Direito do Trabalho.
O Protocolo do CNJ traz diretrizes teóricas e práticas com perspectiva de gênero, orientando a identificar e evitar a reprodução de estereótipos, a considerar desigualdades estruturais na fundamentação das decisões e a promover a igualdade substancial entre as partes.
O protocolo foi elaborado com intuito de impor um olhar diferenciado sobre as relações assimétricas de poder, já inerentes a todo contrato de trabalho, e que na maioria das vezes se somam a outras vulnerabilidades, para tanto optou por uma metodologia de análise centrada em quatro segmentos: desigualdades, discriminações, assédios/violências e segurança/medicina do trabalho.
Reconhecer as desigualdades e assimetrias, por exemplo, possibilita compreender o impacto do trabalho reprodutivo e de cuidado na vida das mulheres trabalhadoras, pelo qual, segundo recentes pesquisas, faz com que as mulheres se dediquem 21,5 horas semanais a mais do que os homens a esse trabalho invisível e não remunerado. Essas desigualdades, acabam por desaguar e por consolidar uma realidade onde mulheres, em razão de seu gênero, possuem menos oportunidades de ingresso, permanência e ascensão na carreira profissional, impactando ainda, de forma desproporcional na persistente desigualdade salarial entre homens e mulheres.
As hipóteses de discriminação são amplas e variadas, e acontecem em todas as fases da relação contratual, ou seja, na fase pré-contatual (anúncio da vaga, seleção e admissão), no curso da relação de emprego (assédio moral e sexual) e na dispensa, que pode ser discriminatória por várias razões.
No que se refere a segurança e medicina do trabalho, deve ser levado em consideração, que o ambiente de trabalho é pensado e projetado para o padrão do homem médio, desconsiderando, muitas vezes, os aspectos fisiológicos que são próprios das mulheres. Ainda sob essa perspectiva, importante detectar a existência de segregação horizontal no trabalho, que, a partir de estereótipos de gênero, concentre as mulheres em ocupações derivadas das funções de reprodução social, ligadas ao trabalho doméstico e ao cuidado. Já a segregação vertical ocorre através de vieses inconscientes, pelos quais, atribui-se aos homens as características relacionadas a maior capacidade de liderança e gestão de negócios.
No que se refere aos protocolos editados pelo TST em 2024, deve-se dar especial destaque ao Protocolo para Atuação e Julgamento com Perspectiva Antidiscriminatória, Interseccional e Inclusiva. Este importante instrumento, avança ao reconhecer que a discriminação no mundo do trabalho não ocorre apenas em razão de gênero, mas também em suas intersecções com raça, classe, idade, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero e territorialidade. Assim, orienta a Justiça do Trabalho a analisar os casos considerando essas múltiplas camadas de opressão que se cruzam e potencializam vulnerabilidades.
Por antidiscriminatória, entende-se uma atuação e julgamento que leve em conta as discriminações históricas contra determinados grupos de pessoas, como mulheres (cis e trans), pessoas LGBTQIAPN+, negras, indígenas, com deficiência e idosas. Já a interseccionalidade diz respeito aos cruzamentos e às relações entre os eixos estruturais de opressão, como o sexismo, o racismo, a heteronormatividade, o capacitismo e o etarismo. Por fim, pela inclusão impõe-se a consideração das limitações ou das barreiras que dificultam o acesso à justiça e aos direitos em igualdade de condições com as demais pessoas pelos grupos estigmatizados.
Essas perspectivas devem ser aplicadas não apenas no ato de proferir um julgamento, mas durante toda a atuação judicial, ou seja, desde a primeira aproximação com as partes, na elaboração das peças processuais, assim como na condução da instrução processual. Considerando desde o início, os marcadores de identidade de gênero, raça e etnia, orientação sexual, classe, condição de PCD e de pessoa idosa de forma interseccional.
Importante referir, que a edição de Protocolos como esses decorrem de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, dentre eles os decorrentes de convenções internacionais, tais quais a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) (ratificada pelo Brasil em 1995). Além disso, o Brasil se comprometeu com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU decorrentes da Agenda 2030, em especial o 5º, para alcançar igualdade de gênero.
Mas ainda há uma distância significativa entre a existência desses documentos e sua efetiva aplicação na justiça do trabalho. Pesquisas mostram que as referências ao Protocolo de Gênero aparecem em menos de 1% das decisões trabalhistas no país. Ou seja, o impacto ainda é bastante limitado diante do volume de processos trabalhistas. Segundo dados do Relatório Geral da Justiça do Trabalho de 2024, foram julgados 4.000.793 processos na Justiça do Trabalho. Pesquisa jurisprudencial usando o descritor: Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, localizou apenas 3.825 processos (0,74%), julgados pelo TST no mesmo período.
No entanto, tais decisões versam majoritariamente sobre arranjos sociais que envolvem: prevalência dos aspectos biológicos; gestação; valor social da maternidade; trabalho reprodutivo e de cuidado; conteúdo familista e maternalista; reforçando cidadania de segunda classe e, amplificam os custos sociais da maternagem suportados pelas mulheres.
E aqui entra o primeiro grande desafio: superar a colonialidade de gênero, uma lógica que nasce do processo colonial moderno, criando a ficção do “gênero” ao naturalizar a diferença sexual, subordinando mulheres a papéis sociais de controle e exploração.
O segundo desafio é de ordem metodológica: precisamos de julgamentos que adotem lentes de interseccionalidade, segundo o qual, o gênero nunca opera isoladamente; ele se cruza com raça, classe, idade, orientação sexual, identidade de gênero, deficiência, territorialidade. E é nesse entrecruzamento que sistema de justiça tem falhado em oferecer respostas adequadas.
O terceiro desafio, e talvez o mais importante, diz respeito à própria formação da advocacia. Não basta que existam protocolos se a advocacia trabalhista não estiver preparada para manejá-los. Cabe a nós, advogadas e advogados, incorporar esses instrumentos em petições, sustentações orais e recursos, provocando o Judiciário e exigindo que a perspectiva de gênero e antidiscriminatória seja efetivamente aplicada. Sem essa atuação estratégica, os protocolos correm o risco de permanecer como meras declarações de intenções.