Imagine que você construiu uma fortuna. Não apenas uma casa na praia e um carro zero, mas uma fortuna de verdade, que transcende gerações, fronteiras e as manobras fiscais de governos que te veem apenas como uma fonte de arrecadação. Você ouve falar de uma estrutura “diferente”, usada por famílias bilionárias, que promete proteger seu legado como nenhum outro veículo: o trust.
A simples menção do nome trust já carrega um ar de mistério, de sofisticação inatingível. Mas o que exatamente é essa figura, e, mais importante, no cenário atual do Brasil, ela continua sendo o cofre que todos sonham, ou virou apenas um luxo caro que poucos conseguem justificar?
A resposta, como em tudo no planejamento patrimonial sério, é: depende. E esse "depende" é a diferença entre proteger seu patrimônio com a inteligência de um estrategista ou enterrá-lo, pagando caro por algo que não funciona.
Não é uma empresa, é um compromisso
Para a maioria das pessoas, a mente se volta para empresas (LLCs, holdings) quando pensamos em proteção de ativos. O trust é algo fundamentalmente diferente. Não é uma pessoa jurídica, nem uma empresa. É um arranjo legal complexo, onde três figuras principais se conectam:
- Settlor (ou grantor): Você. A pessoa que detém o patrimônio e decide transferi-lo para o trust. É o criador da "obra".
- Trustee (administrador): Quem guarda. Uma entidade (geralmente um banco ou uma empresa fiduciária profissional e regulada em uma jurisdição sólida) que recebe a propriedade legal dos ativos. O trustee tem o dever fiduciário de administrar esses bens estritamente de acordo com as instruções do settlor, para o benefício de terceiros.
- Beneficiários: Sua família (ou quem você quiser). As pessoas que, um dia, receberão os benefícios dos ativos mantidos pelo trust, conforme as regras estabelecidas pelo settlor.
O ponto crucial aqui é: quando você transfere bens para um trust, você, o settlor, deixa de ser o proprietário legal desses ativos. O proprietário legal passa a ser o trustee. Você perde o "controle" sobre os bens no sentido jurídico (embora mantenha o controle indireto via as regras do trust deed). E é exatamente essa perda de controle que confere ao trust o seu poder de proteção e planejamento sucessório.
Pense nisso como colocar seu tesouro em um cofre, mas dar ao gerente do banco (trustee) a propriedade legal do cofre e de seu conteúdo, com instruções detalhadas (o trust deed, ou escritura de trust) sobre quem pode acessá-lo, quando e sob quais condições. É como usar uma Ferrari para proteger sua família, mas você não tem mais a chave; ela está com o piloto profissional.
Para que ele não serve (e nunca serviu)
Antes de falarmos no que o trust pode fazer, é fundamental falar o que ele não faz. Porque, como sempre, a desinformação é rei em planejamentos.
- Não é para sonegar: Um trust sério, em uma jurisdição reputável, não é uma ferramenta para sonegação. Ele pode oferecer elisão fiscal (planejamento inteligente para reduzir impostos dentro da lei), mas não evasão. As regras de compliance internacional, como o CRS - Common Reporting Standard, garantem que suas informações cheguem à Receita Federal.
- Não é caixa preta: A era do anonimato fiscal para o capital estrangeiro acabou. Com a troca automática de informações financeiras, suas informações de settlor e beneficiário de um trust estão sendo reportadas ao fisco brasileiro.
- Não é barato: O custo de criação, manutenção e administração de um trust profissional (fees do trustee, contadores, advogados especializados) é substancial. Não é uma solução para qualquer patrimônio. Se você não tem um patrimônio complexo e significativo, é provável que os custos superem os benefícios.
Por que ainda funciona?
Superados os mitos, vamos ao que interessa. Para quem tem um patrimônio complexo e objetivos claros, o trust oferece vantagens que poucos outros veículos podem igualar:
- Proteção genuína: Como os bens deixam de ser legalmente seus e passam para o trustee, eles se tornam, em tese, imunes a credores, processos de divórcio, execuções e outras contingências que possam surgir contra você (o settlor). É uma barreira legal robusta, difícil de ser penetrada, desde que a transferência para o trust seja feita de boa-fé e sem intenção fraudulenta.
- Planejamento robusto: Este é um dos pontos mais fortes. Os ativos no trust não entram em inventário. As regras de como e quando os bens serão distribuídos aos seus beneficiários estão detalhadas no trust deed, de forma clara e inquestionável. Isso evita brigas familiares, garante a continuidade do seu legado e assegura que sua vontade será cumprida, mesmo décadas após sua partida.
- Confidencialidade: Embora as informações fiscais sejam trocadas entre governos, os detalhes sobre os bens mantidos no trust e os seus beneficiários geralmente não são públicos, diferentemente de um inventário ou de um registro de empresas em muitas jurisdições.
- Flexibilidade: Um trust pode ser desenhado para as mais diversas finalidades: financiar a educação de netos, garantir a subsistência de um filho com necessidades especiais, perpetuar uma causa beneficente, ou até mesmo incentivar comportamentos específicos (por exemplo, distribuição de fundos apenas se o beneficiário concluir a universidade). A criatividade é o limite (dentro da legalidade, claro).
- Arbitragem: Os ativos no trust são regidos pela lei da jurisdição onde o trust foi estabelecido (Nevada, Ilhas Cook, Jersey, Suíça, etc.), e não pela lei brasileira. Isso oferece uma camada adicional de segurança jurídica, especialmente em face da instabilidade legislativa em algumas jurisdições.
A lei 14.754/23: Trust no foco do fisco
A nova lei 14.754/23, que rege a tributação de investimentos no exterior e offshores, colocou o trust sob uma nova luz. O que antes era uma área cinzenta, agora tem regras (ou tentativas de regras) mais definidas, e elas podem transformar um trust malfeito em um pesadelo.
- A presunção de controle: A lei brasileira tenta aplicar aos trusts uma lógica de "controle" similar à das offshores. Se o settlor ou os beneficiários mantiverem um controle efetivo sobre os ativos do trust (por exemplo, poder de revogar, nomear/remover trustee sem restrições, dispor dos bens a qualquer momento), o fisco brasileiro pode considerar que o trust é uma "entidade controlada".
- O "achado" da Receita: Se o trust for considerado "controlado", seus rendimentos anuais serão tributados em 15% no Brasil, da mesma forma que os lucros de uma offshore comum. Isso aniquila a principal vantagem fiscal que alguns trusts tinham e, de repente, ele vira um "luxo que ficou caro", pois os altos custos de manutenção serão somados a uma tributação anual pesada, sem entregar os benefícios esperados de proteção e sucessão.
- O "trust de fachada": Aqui mora o perigo maior. Um trust mal desenhado, onde a "perda de controle" é uma mera formalidade no papel, será facilmente desqualificado pelo fisco brasileiro. Não basta assinar um documento em inglês; é preciso que a estrutura tenha substância e que a perda de controle seja real e inquestionável. Isso é o que diferencia o trust legítimo das "offshores com disfarce de controle por terceiros" que alguns "especialistas" tentam vender - esses sim, são apenas simulações perigosas.
Alternativas inteligentes: O que fazer agora?
O novo cenário exige uma reavaliação crítica. O trust continua sendo uma ferramenta de elite, mas agora, mais do que nunca, exige precisão cirúrgica.
- Revisão de trusts existentes: Se você já possui um trust, é fundamental que ele seja revisado por um especialista multidisciplinar. Sua estrutura realmente garante a perda de controle necessária para mitigar a tributação anual de 15% no Brasil? As regras estão claras o suficiente?
- Foco em irrevogabilidade e discricionariedade: Os trusts que oferecem maior proteção e flexibilidade no cenário atual são os irrevogáveis (o settlor não pode mais alterar ou cancelar) e discricionários (o trustee tem discricionariedade sobre as distribuições, não sendo mera "caixa postal" do settlor). Estes são os que têm maior chance de serem reconhecidos como estruturas legítimas de perda de controle.
- A importância da jurisdição e do trustee: A escolha da jurisdição (Nevis, Ilhas Cook, Bahamas, Jersey) e, principalmente, de um trustee profissional e independente é vital. Um trustee de reputação internacional, que não se dobre às vontades do settlor, é a espinha dorsal de um trust eficaz.
- Criptoativos em trusts: Dada a completa ausência de regulamentação clara para a sucessão de criptoativos no Brasil, o trust surge como a solução mais robusta. Transferir as chaves privadas ou o controle dos ativos digitais para um trustee profissional garante que seu legado em cripto não morrerá com você e será distribuído conforme sua vontade.
- Combinação com outras ferramentas: O trust não é um lobo solitário. Ele pode ser combinado com seguros de vida resgatáveis (para liquidez imediata) e holdings (para gerenciar ativos operacionais), criando um ecossistema de proteção e planejamento ainda mais robusto.
Conclusão
O trust não é uma panaceia. Não é uma "solução mágica" para todos os problemas e, definitivamente, não é para qualquer patrimônio. Mas tem alta precisão nas mãos certas e realmente pode preservar e perpetuar um legado por gerações.
Mas, nas mãos erradas, com a nova realidade fiscal brasileira, ele pode virar um custo proibitivo, um luxo que você pagou caro e que não entregou o que prometeu. O cofre existe, mas precisa de um chaveiro.