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Judicialização da saúde: Quando o STF diz "não basta prescrição"

O STF redesenhou os contornos da judicialização da saúde: A exceção continua possível, mas exige prova robusta, fundamentação técnica e deferência às escolhas públicas coletivas.

6/10/2025
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A judicialização da saúde tornou-se um dos temas centrais da jurisdição constitucional brasileira, resultado da constitucionalização da saúde como direito fundamental e não se limita a casos isolados: trata-se de realidade estruturante do próprio sistema de Justiça.

O CNJ, atento ao crescente ajuizamento de ações envolvendo a assistência à saúde e a necessidade de melhor estudar fenômeno para prevenir litígios e adequar gestão dos processos em tramitação, instituiu, no ano de 2010, o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, por sua resolução 107.

Somente no ano de 2024, foram julgados 653.119 processos envolvendo saúde (saúde pública e saúde suplementar), estando pendentes de julgamento mais de 857.298 processos, conforme estatística do CNJ.

Esses números oficiais confirmam que o tema deixou de ser exceção para se tornar fenômeno sistêmico, que transforma o Judiciário em ator permanente da política sanitária, o que gera efeitos positivos, como a concretização imediata de direitos individuais, mas também impactos estruturais, como a fragmentação orçamentária e a desorganização de políticas públicas.

O STF foi chamado a oferecer respostas institucionais, assim.

O julgamento do RE 566.471 (Tema 6 da repercussão geral), ocorrido em setembro de 2024, insere-se precisamente nesse contexto. O Tribunal Pleno, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio e com redação do acórdão pelo ministro Luís Roberto Barroso, consolidou diretrizes que não apenas solucionam o caso concreto, mas que reordenam o papel do Judiciário frente ao direito fundamental à saúde.

A tese firmada parte de um ponto fundamental: a separação de poderes. A incorporação de tecnologias em saúde não pode ser decidida judicialmente como regra, porque envolve critérios técnicos e econômicos que exigem expertise administrativa. O Supremo reconheceu que essa atribuição cabe à Conitec e a outros órgãos competentes, de modo que a política pública deve prevalecer como parâmetro geral de racionalidade e de equidade.

Nesse sentido, estabeleceu-se a regra geral de vedação: o fornecimento de medicamentos não incorporados às listas oficiais do SUS não deve ser determinado pelo Judiciário.

Todavia, a Corte não ignorou a força normativa da Constituição, que consagra o direito à saúde como de eficácia imediata. Reconheceu, assim, um espaço excepcional de intervenção judicial, desde que atendidos seis requisitos cumulativos: negativa administrativa formal; ilegalidade ou mora irrazoável na avaliação técnica; inexistência de substituto terapêutico no SUS; comprovação de eficácia, efetividade e segurança por evidência científica de alto nível; imprescindibilidade clínica para o caso concreto; e hipossuficiência do paciente.

Ao estruturar esse filtro rigoroso, o Supremo evita tanto a omissão estatal quanto a proliferação de decisões judiciais que, em nome do indivíduo, comprometem a coletividade.

Embora tenha prevalecido a posição que conferiu maior deferência às escolhas técnicas do Executivo, o julgamento não se deu em absoluta unanimidade. Houve ministros que ressaltaram a necessidade de preservar um espaço mais amplo para a intervenção judicial, sobretudo em situações em que o risco à vida e à dignidade do paciente não pudesse aguardar a tramitação regular da incorporação administrativa. Outros destacaram a dimensão orçamentária e a universalidade do SUS, advertindo que decisões individuais podem comprometer a equidade do sistema.

O acórdão, redigido pelo ministro Luís Roberto Barroso, acabou por representar um ponto de equilíbrio entre essas correntes: reconheceu a força normativa do direito à saúde, mas delimitou com rigor as hipóteses de exceção, reafirmando o papel do Supremo como árbitro institucional diante de tensões entre garantias individuais e racionalidade coletiva.

Outro ponto de destaque é a exigência de fundamentação técnica qualificada. O STF foi categórico ao afirmar que decisões judiciais não podem se basear exclusivamente em prescrições médicas individuais. O magistrado deve considerar pareceres técnicos, como os elaborados pelo NATJUS, e observar o dever de fundamentação previsto no art. 93, inc. IX, da Constituição da República e no art. 489 do CPC. A decisão judicial passa a ser, também nesse campo, expressão de racionalidade institucional e não apenas de sensibilidade humanitária.

No caso concreto, discutia-se o fornecimento de citrato de sildenafila, incorporado ao SUS durante o trâmite. Ainda assim, o Supremo negou provimento ao recurso, aproveitando a oportunidade para fixar tese de repercussão geral com eficácia vinculante. A função do julgamento foi, portanto, mais normativa do que casuística, oferecendo parâmetros de alcance nacional.

Essa decisão insere-se em um movimento maior de autocontenção judicial e de valorização do espaço institucional dos órgãos técnicos, aproximando o Brasil de práticas internacionais de avaliação de tecnologias em saúde. Ao mesmo tempo, preserva a possibilidade de intervenção em situações excepcionais, garantindo que o direito à saúde não seja esvaziado por omissões administrativas.

No plano prático, a decisão do STF produz efeitos em três dimensões: para a advocacia, impõe a necessidade de demandas instruídas de forma minuciosa, com provas capazes de demonstrar todos os requisitos cumulativos; para a magistratura, reforça o dever de fundamentação técnica e o diálogo institucional com órgãos especializados; para o sistema público de saúde, assegura maior previsibilidade e preserva a lógica distributiva do SUS.

Em perspectiva mais ampla, o julgamento dialoga com a Agenda 2030 da ONU, nos objetivos de assegurar saúde de qualidade (ODS 3), reduzir desigualdades (ODS 10) e fortalecer instituições eficazes e responsáveis (ODS 16).

O Supremo reafirma, assim, que a proteção de direitos fundamentais não se realiza por decisões atomizadas, mas por soluções que preservam a equidade e a sustentabilidade do sistema.

O Tema 6 da repercussão geral constitui, portanto, um marco. Ele redesenha a função do Judiciário na política de saúde, reafirmando a regra da deferência às escolhas públicas coletivas e delimitando, de forma estrita, as hipóteses de exceção. O recado do Supremo é claro: no Estado Constitucional, a efetividade do direito à saúde exige ciência, técnica e equilíbrio institucional. A prescrição isolada já não basta.

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Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em Números 2023. Brasília: CNJ, 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf.

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Painel de Judicialização da Saúde. Disponível em: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw%2FJudicializacaoSaude.qvw&host=QVS%40neodimio04&anonymous=true.

Autor

Leonardo Moldero Advogado. Mestrando em Cidades Inteligentes e Sustentáveis (UNINOVE). Especialista em Compliance, Governança corporativa e ESG (IBMEC). Atuação nas áreas criminal, compliance e direito sanitário.

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