Migalhas de Peso

O TCU e a cidadania digital inclusiva

A Constituição de 1988 ampliou a proteção às pessoas com deficiência, e o TCU reforça a urgência da acessibilidade digital como direito fundamental.

8/10/2025

A Constituição Federal de 1988, nossa “Constituição Cidadã”, abarcou, em seus preceitos protetivos, diversos grupos sociais até então esquecidos, com destaque para as pessoas com deficiência, denominadas, à época, “portadores de deficiência”.

Sem dúvida, os princípios regentes do sistema protetivo que se pretendia promover eram: igualdade e não discriminação (art. 5º, caput). Contudo, a Constituição avançou ao estabelecer direitos e garantias em áreas específicas, como: “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência” (art. 7º, XXXI); reserva de “percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência” (art. 37, VIII); na assistência social, “a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária” (art. 203, IV); e, na educação, “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (art. 208, III).

São apenas exemplos, cabendo ainda destacar o art. 244, já nas Disposições Constitucionais Gerais: “A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência”. Portanto, a acessibilidade das pessoas com deficiência é um tema que preocupou, inequivocamente, os Constituintes de 1987/1988.

Obviamente, naquele momento, ainda não havia se desenvolvido a ideia de inclusão digital, embora o acesso à informação já estivesse contemplado no art. 5º, inciso XXXIII, ao assegurar a todos o direito de receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral, impondo ao Estado o dever de prestá-las.

Na atual quadra tecnológica, cabe-nos concluir que a mesma preocupação demonstrada quanto ao direito de acesso a logradouros, edifícios e veículos projeta-se, em necessária atualização de sentido e alcance, aos espaços, vias e meios digitais ou virtuais. A ausência de acessibilidade em sites e aplicativos públicos é tão prejudicial quanto a inexistência de rampas, corrimãos, piso tátil, banheiros adaptados e mobiliário acessível. Por exemplo, uma pessoa com deficiência visual que não tenha acesso a um leitor de tela ou à descrição textual (alt text) ficará impedida de acessar plenamente um portal governamental. Sua cidadania, tanto geral quanto digital, estará em inequívoco déficit quanto à eficácia e à efetividade.

Importante lembrar que, no âmbito infraconstitucional, nosso ordenamento não tem deixado espaço para omissão ou tergiversação. A lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15) estabelece, em seu art. 63:

“É obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponíveis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente.”

Também a lei de acesso à informação (lei 12.527/11), em seu art. 8º, § 3º, inciso VIII, ao estabelecer o dever de os órgãos e entidades públicas promoverem a divulgação de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas, especialmente no que se refere aos sítios oficiais da internet, impõe como requisito:

“[…] adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência, nos termos do art. 17 da lei 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo decreto legislativo 186, de 9 de julho de 2008.”

Imagine-se a frustração e o sentimento de desvalorização que uma pessoa com deficiência interioriza ao acessar um canal de informação pública - um portal que disponibiliza um serviço público necessário e essencial - e encontrá-lo inacessível à sua condição física limitante, seja por desídia, desatenção ou desinteresse. Agrava a situação o fato de que tal omissão configura descumprimento da legislação em vigor.

Foi nesse contexto que o TCU - Tribunal de Contas da União realizou fiscalização do tipo “levantamento”, com o objetivo de identificar a adoção de boas práticas de acessibilidade digital nas instituições do setor público federal, garantindo, em última instância, a devida inclusão digital das PCD - pessoas com deficiência, em atendimento aos preceitos legais e constitucionais.

Segundo o Regimento Interno do TCU (art. 238), o levantamento é o instrumento de fiscalização utilizado pelo Tribunal para:

“I – conhecer a organização e o funcionamento dos órgãos e entidades da administração direta, indireta e fundacional dos Poderes da União, incluindo fundos e demais instituições que lhes sejam jurisdicionadas, assim como dos sistemas, programas, projetos e atividades governamentais no que se refere aos aspectos contábeis, financeiros, orçamentários, operacionais e patrimoniais;

II  – identificar objetos e instrumentos de fiscalização; e

III  avaliar a viabilidade da realização de fiscalizações.”

O Relatório foi apresentado pelo competentíssimo ministro Antônio Anastasia e revela um quadro ao mesmo tempo preocupante e desafiador. Foram avaliados 288 órgãos e entidades federais, que responderam integralmente aos questionários, entre os quais se destacam: a Advocacia-Geral da União, as agências reguladoras, os bancos públicos, os diversos conselhos federais de classe, as empresas de pesquisa e as fundações federais, as universidades federais e os institutos federais de educação, a Polícia Civil do Distrito Federal, a Procuradoria- Geral da Fazenda Nacional, além do Senado Federal e do STF. Trata-se, portanto, de um conjunto diversificado de órgãos dos três Poderes da União, do Ministério Público da União e dos serviços sociais autônomos.

Como registrou o ministro Anastasia em seu voto:

“A acessibilidade digital, no atual contexto de transformação digital da administração pública, configura-se como elemento essencial para a promoção da inclusão e da efetivação dos direitos fundamentais.”

Na análise realizada em confronto com o arcabouço internacional (WCAG - Web Content Accessibility Guidelines, do W3C - World Wide Web Consortium) e o nacional (lei 13.146/15 e o eMAG - Modelo de Acessibilidade em Governo Eletrônico), o relator asseverou que se impõe:

“[…] ao poder público o dever jurídico e institucional de assegurar a acessibilidade digital como condição indispensável para a efetividade dos direitos das pessoas com deficiência e para a promoção de um ambiente digital verdadeiramente inclusivo.”

Foi com base nesses parâmetros e fundamentos que o TCU promoveu o referido levantamento, cujos questionários encaminhados às organizações contemplaram sete dimensões: Governança; Design e Desenvolvimento; Testes e Validação da Acessibilidade; Capacitação e Cultura Organizacional; Atendimento de Pessoas com Deficiência e Incorporação de Retorno do Usuário; Manutenção e Melhoria Contínua; e Transparência e Promoção da Acessibilidade Conquistada.

O conjunto dessas dimensões, de enorme relevância para a gestão pública contemporânea, revela que, para além da simples conformidade técnica, fazem-se necessárias profundas mudanças culturais e organizacionais, capazes de garantir que as soluções propostas e implementadas sejam efetivamente utilizáveis e testadas por seus destinatários. Ademais, os “avanços” não devem ser tomados como estáticos ou definitivos, mas, sim, como provisórios e dinâmicos.

À guisa de exemplificação, a dimensão “Manutenção e Melhoria Contínua” é responsável por avaliar se “as organizações monitoram o estado atual da acessibilidade de suas soluções, controlam as alterações realizadas para manter a conformidade e acompanham o progresso ao longo do tempo”. Ora, sendo inegável a velocidade com que as atualizações tecnológicas se processam, não se pode admitir que a resposta às necessidades de acessibilidade não ocorra também de forma constante e célere.

Pode-se ler no relatório que os dados revelam um “cenário crítico de acessibilidade digital nas entidades públicas federais”, pois “88% das organizações respondentes apresentaram desempenho abaixo de 5 pontos, com falhas que comprometem o uso das soluções oferecidas, o atendimento adequado ao usuário e o acesso a direitos.”

Chama atenção a constatação de que as organizações “[…] não conseguem oferecer suporte qualificado às pessoas com deficiência, tampouco informar com clareza os padrões e condições de acessibilidade disponíveis.”

A fiscalização identificou cases positivos, especialmente nos Poderes Legislativo e Judiciário, em bancos e algumas empresas públicas, destacando que a plataforma Gov.br também demonstrou potencial para elevar o nível de acessibilidade, mesmo em organizações com estruturas menos desenvolvidas, devido à sua padronização.

No contexto da garantia de acessibilidade digital, a padronização é um elemento fundamental.

Um dos pilares que o TCU identificou para a promoção da acessibilidade é a adoção de normas atualizadas, reconhecidas internacionalmente, como as WCAG - Web Content Accessibility Guidelines (Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo Web), do W3C -World Wide Web Consortium.

É interessante destacar que as diretrizes do W3C, ao serem implementadas, buscam tornar os conteúdos mais acessíveis a qualquer usuário, sendo, entretanto, imprescindíveis para as pessoas com deficiência, na medida em que apresentam adaptações que ampliam a acessibilidade nos casos de cegueira e baixa visão, surdez e perda auditiva, mobilidade limitada, deficiências de fala e fotossensibilidade, além de contemplarem dificuldades de aprendizagem e limitações cognitivas.

Essas normas são aplicáveis a diversos dispositivos - desktops, laptops e dispositivos móveis - e são direcionadas a uma diversidade de atores que lidam com o tema, desde gestores e agentes de compras públicas até web designers e desenvolvedores das organizações públicas.

No belo voto do ministro Anastasia, lê-se:

“Sem interfaces acessíveis, a mera disponibilização de equipamentos ou conexão à internet não assegura, por si só, o pleno exercício da cidadania digital. Um site governamental inacessível, por exemplo, inviabiliza o acesso de uma pessoa com deficiência visual a serviços públicos on-line, gerando exclusão e violação de direitos fundamentais.”

O TCU, mais uma vez, cumpre papel fundamental no enfrentamento de assuntos complexos e sensíveis - mas necessários -, não apenas fiscalizando a conformidade legal e constitucional, mas também induzindo a transformação institucional dos órgãos e instituições federais em prol da efetivação da cidadania plena, desta feita, quanto à acessibilidade digital.

Espera-se que os alertas e recomendações constantes do acórdão TCU 2099/25 - Plenário sejam observados rigorosamente por todas as instituições do setor público federal.

No âmbito dos Estados-membros e municípios, entes nos quais o TCU não exerce jurisdição fiscalizadora direta, cabe aos Tribunais de Contas estaduais (e municipais) assumirem a defesa da cidadania digital inclusiva, fiscalizando sempre que necessário, mas também conscientizando e comprometendo os gestores públicos, em todos os níveis, para que compreendam a acessibilidade digital como um direito fundamental, que precisa ser garantido a todas as pessoas.

Giussepp Mendes
Advogado especialista em direito administrativo público.

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