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Automação robótica e prática jurídica: Da rotina manual à operação inteligente

Com aproximadamente 35,3 milhões de novos processos por ano, a advocacia brasileira enfrenta um desafio sem precedentes. Nesse cenário, os RPAs estão mudando o jogo e preparando profissionais para o futuro.

13/10/2025

A prática jurídica tradicional, que, historicamente, foi marcada por rotinas manuais intensivas e dependentes de papéis físicos, atravessa uma fase de reestruturação, que, por sua vez, é impulsionada por avanços tecnológicos. Dentre esses, a Automação Robótica de Processos, ou RPA, do inglês Robotic Process Automation emerge como ferramenta central.

Trata-se, em síntese, de um conjunto de algoritmos de software que, além de outras funções, podem replicar interações humanas em interfaces digitais, executando sequências repetitivas com alta precisão e em um curto período.

No dia a dia dos escritórios, o RPA vai muito além da automação básica. Ele permite, por exemplo, a extração de dados de petições e decisões judiciais por meio de interfaces como APIs, ferramenta que possibilita diferentes sistemas de software se comunicarem entre si, ou, ainda, a análise de PDFs, valendo-se de linguagens como Python combinadas às suas ramificações.

Pode, ainda, ser aplicado no monitoramento, em tempo real, de prazos nos sistemas PJe e e-SAJ, na elaboração de relatórios analíticos e na integração entre sistemas de gestão jurídica e bases de jurisprudência.

O RPA diferencia-se por operar exclusivamente sob regras determinísticas e fluxogramas pré-configurados, sem ter, sozinho, capacidade de inferência probabilística autônoma. Um RPA pode iterar diariamente sobre feeds de diários oficiais, aplicando filtros para identificar intimações específicas e disparar alertas via e-mail, transformando o tempo dos ciclos de verificação manual para minutos ou até segundos.

Ao contrário da inteligência artificial generativa, que pode introduzir elementos de imprevisibilidade, o RPA pode ser, sob certa ótica, mais controlável. Um robô pode, por exemplo, percorrer processos digitais diariamente, filtrar intimações e enviar alerta sobre movimentações, eliminando horas de trabalho manual.

A liberação de tempo permite que o advogado se dedique ao raciocínio jurídico profundo, como defende Ferraz Jr. (2020) em suas reflexões sobre a técnica no direito, nas quais a automação serve ao humano, mas não o substitui.

Tal abordagem, contudo, não usurpa, por óbvio, o raciocínio jurídico, que é, de forma inegociável, reservado ao profissional do direito, porém, otimiza a alocação de recursos cognitivos para análises estratégicas, concentrando forças em tarefas que dependem mais do conhecimento técnico do advogado ou advogada.

A adoção do RPA no direito brasileiro reflete uma adaptação gradual às demandas do nosso sistema judiciário, marcado por sua complexidade, e, principalmente, pelo seu volume. Inicialmente restrito a grandes empresas para fins de compliance e contratos, o RPA se popularizou com plataformas acessíveis como UiPath e Automation Anywhere, alcançando escritórios menores.

Essa democratização acompanha uma tendência mundial de fusão entre RPA e IA, o que faz emergir a hiperautomação, que não só executa tarefas, mas as otimiza ao identificar padrões, uma evolução que, segundo autores como Rocha e Waldman (2025), exige uma reavaliação dos paradigmas jurídicos tradicionais.

No Brasil, a LGPD, lei 13.709/18, impõe desafios adicionais, obrigando que as automações incorporem, desde o início, princípios como finalidade, adequação e transparência. Longe de ser um entrave, isso pode se tornar uma vantagem, como em casos em que escritórios usam RPA para auditorias automáticas de conformidade, alinhando-se à doutrina de Coelho (2024), que enfatiza a IA aplicada aos serviços jurídicos como ferramenta para uma advocacia mais responsável e ética.

De acordo com o Relatório Justiça em Números 2024, do CNJ, foram ajuizados 35,3 milhões de novos processos em 2023, representando o maior patamar da série histórica com um aumento de 9,4% em relação ao ano anterior. O acervo total em tramitação ao final do ano era de 83,8 milhões de processos, enquanto 99,6% dos casos novos ingressaram em formato eletrônico, o que reforça a transição para rotinas digitais e torna a gestão manual cada vez mais inviável para evitar sobrecargas no sistema (p. 28).

Esses números destacam a necessidade de automação, especialmente considerando que 22% do estoque (18,5 milhões) estavam suspensos, aguardando julgamentos de precedentes, o que poderia ter sido otimizado por meio de automações, visando a fornecer monitoramento e alertas (p. 18).

As perspectivas de mercado reforçam a necessidade urgente de automação na advocacia. No relatório Future of Professionals Report 2025, da Thomson Reuters, 80% dos profissionais, incluindo os da área jurídica, preveem que a IA terá um impacto alto ou transformacional em sua profissão nos próximos cinco anos, com 44% classificando-o como transformacional e 36% como alto, destacando como a tecnologia está redefinindo, de forma direta, a eficiência em tarefas repetitivas (p. 5).

Essa urgência é, inclusive, quantificada pelos ganhos de produtividade projetados. Conforme o relatório da Thomson Reuters, profissionais do setor jurídico esperam liberar quase 240 horas por ano graças à adoção de IA, um aumento em relação às 200 horas estimadas em 2024, o que desbloqueia um valor médio anual de US$ 19 mil por profissional e contribui para um impacto combinado de US$ 32 bilhões nos setores jurídico e de contabilidade fiscal nos Estados Unidos, permitindo que advogados se concentrem em análises estratégicas em vez de rotinas manuais (p. 2).

Além disso, a implementação estratégica da automação gera retornos financeiros mensuráveis. O estudo revela que organizações com estratégias visíveis de IA são duas vezes mais propensas a experimentar crescimento de receita como resultado direto ou indireto da adoção de IA (p. 4).

As aplicações do RPA na advocacia são variadas e impactantes. Na pesquisa jurisprudencial, por exemplo, robôs vasculham, simultaneamente, as bases do STF, STJ e tribunais locais, organizando acórdãos em minutos, uma tarefa que demandaria horas, senão dias. É importante destacar, contudo, que a tecnologia coleta e estrutura os acórdãos, porém, a interpretação permanece humana, evitando os riscos de vieses algorítmicos ou “alucinações” de IAs generativas.

Na gestão de prazos, o RPA elimina riscos de preclusão ao monitorar sistemas judiciais e sincronizar calendários. Em due diligence, pode extrair dados de volumes imensos de documentos, acelerando análises. Para o compliance, verifica mudanças regulatórias e gera relatórios, garantindo aderência à LGPD e conformidade às demais legislações. Já na gestão contratual, automatiza minutas e identifica inconsistências, dinamizando o ciclo de vida dos contratos.

Essas práticas, como sublinha Ramos (2024) em relatórios sobre IA no judiciário, apontam que os benefícios são quantificáveis: reduções de erros em 95% para tarefas repetitivas (p. 119).

Porém, apesar dos ganhos, desafios persistem. A OAB equilibra prerrogativas com modernização, na via regulatória, definindo limites éticos para automação, em conformidade com o Estatuto da Advocacia e a LGPD. A lacuna de competências e resistência cultural demandam educação continuada, parcerias com desenvolvedores e implementações faseadas. Na capacitação, profissionais precisam se adaptar a uma advocacia em transformação, na qual habilidades em tecnologia se tornam cada vez mais essenciais.

Eventos da FGV e da OAB debatem esses desafios constantemente, enfatizando a gestão de riscos regulatórios e o impacto da inovação tecnológica. Superar esses obstáculos requer investimentos em educação e políticas que equilibrem automação com o papel humano na justiça.

A automação robótica não representa o fim da advocacia tradicional, mas, sim, sua evolução necessária. O RPA empodera o advogado moderno, liberando-o das amarras do trabalho repetitivo para que possa, assim, exercer plenamente sua capacidade analítica, criativa e estratégica. Isso nos leva a pensar que o futuro da advocacia pode não ser definido pela escolha entre humano ou máquina, mas, sim, pela sinergia entre ambos.

A questão não é se a automação chegará aos escritórios, mas quando e como eles a implementarão. Os dados, casos de sucesso e tendências de mercado apontam para uma única direção: a transformação digital da advocacia é irreversível, e os profissionais que liderarem essa mudança definirão os padrões da prática jurídica nas próximas décadas.

O momento de agir é agora. A justiça do futuro será mais rápida, precisa e acessível, e a automação robótica é uma das pontes para esse amanhã.

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Referências

BRASIL. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 jul. 1994.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.

COELHO, Alexandre Zavaglia; BARBOSA, Maria Juliana do P. Inteligência Artificial Aplicada aos Serviços Jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2024. Brasília: CNJ, 2024.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

INSTITUTO INFORMATION MANAGEMENT. RPA & AI Congress SP 2025. São Paulo: IIMA, 2025.

RAMOS, Janine Vilas Boas Gonçalves. Inteligência artificial no Poder Judiciário brasileiro: projetos de IA nos tribunais e o sistema de apoio ao processo decisório judicial.252 f., il. Dissertação. Universidade de Brasília, Brasília, 2022.

ROCHA, Bruno Augusto Barros; WALDMAN, Ricardo Libel. Os Reflexos da Inteligência Artificial no Direito e os Novos Desafios da Carreira Jurídica. Revista do Direito do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho, [S. l.], v. 6, n. 1, p. 131–150, 2020.

THOMSON REUTERS. Future of Professionals Report. 2025.

Luan Henrique de Melo Vilaça Dornelas
Advogado e Designer Gráfico. Possui experiência consolidada em Gestão Jurídica, com foco em inovação, automação de fluxos e aprimoramento da experiência do usuário por meio de Legal Design e Visual Law. Atua no Contencioso Cível Empresarial e na Equipe de Gestão Jurídica do Escritório Rolim Goulart Cardoso Advogados.

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