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A limitação de responsabilidade em contratos de construção civil

Cláusula de limitação de responsabilidade em contratos de projetos de construção civil & infraestrutura.

14/10/2025

A cláusula de limitação de responsabilidade tem se consolidado como um instrumento legítimo e amplamente utilizado para a gestão de riscos em contratos de execução de projetos de construção civil e infraestrutura. Trata-se de mecanismo contratual especialmente relevante em contextos que envolvem elevada complexidade técnica, cronogramas extensos e apertados, múltiplas interfaces operacionais e margens de tolerância estreitas para eventos imprevistos.

Nesses ambientes, nos quais a alocação eficiente de riscos pode definir o sucesso ou o colapso de uma relação contratual, a estipulação prévia de limites à responsabilidade das partes constitui verdadeira ferramenta de engenharia jurídica.

O objetivo central dessa cláusula é delimitar, de forma objetiva e consensual, os prejuízos indenizáveis em caso de inadimplemento contratual. Em geral, os limites são expressos por meio de valores fixos, tetos máximos de responsabilidade ou percentuais vinculados ao valor global do contrato.

Em muitos casos, as partes também convencionam a exclusão de determinados danos considerados indiretos ou consequenciais, tais como lucros cessantes, perda de receitas, interrupções operacionais, penalidades aplicadas por terceiros e abalos à reputação.

Essa prática, encontra limites na própria estrutura do ordenamento jurídico. O art. 4211 e 421-A2 do CC estabelecem que a liberdade contratual deve ser exercida em consonância com a função social do contrato seus elementos, enquanto o art. 4223 impõe o dever de observar a boa-fé durante a formação, execução e encerramento do vínculo obrigacional.

Dessa forma, cláusulas limitativas de responsabilidade não produzem efeitos quando eivadas por dolo, culpa grave ou fraude, sob pena de se converterem em escudo para práticas abusivas e distorcidas da autonomia privada.

Jurisprudência relevante: O REsp 1.989.291/SP

A interpretação dessas balizas legais foi aprofundada do julgamento do STJ, no REsp 1.989.291/SP4, julgado pela 3ª turma. Na hipótese, discutia-se a validade de uma cláusula que limitava a indenização devida, por danos materiais e morais, ao montante de US$ 1 milhão, em um contrato de longa duração.

O acórdão reconheceu expressamente a validade da cláusula, por entender que não houve vício de consentimento, nem previsão de indenização suplementar no contrato, conforme exigido pelo art. 4165, parágrafo único, do CC. Também não se identificou dolo ou má-fé na pactuação do limite indenizatório. Assim, o tribunal reformou a decisão do Tribunal de origem que havia afastado a limitação e restabeleceu sua eficácia, em respeito ao acordo firmado entre as partes.

O relator destacou que, apesar da existência de assimetrias contratuais decorrentes do poder técnico e econômico de uma das partes, a contratada não se apresentava como parte hipossuficiente. Tratava-se de empresa de grande porte, com autonomia técnica, estrutura operacional sólida e presença consolidada no mercado.

Autonomia da vontade e equilíbrio contratual

A decisão em comento reafirma a importância da autonomia da vontade nos contratos de projeto, sobretudo quando celebrados entre partes capazes, experientes e em posição econômica relativamente equilibrada. Nesses casos, a cláusula de limitação de responsabilidade não apenas é admitida, como encontra respaldo nos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, fundamentos essenciais ao desenvolvimento de atividades empresariais em larga escala.

Outra modalidade de alocação de risco é a cláusula penal, que pode ser estipulada como forma de prefixação das perdas e danos, dispensando o credor de demonstrar o efetivo prejuízo. O art. 416, por sua vez, reforça que, na ausência de autorização expressa, é vedado exigir indenização suplementar além do valor convencionado, salvo nos casos de dolo.

Previsibilidade e segurança jurídica na gestão contratual

Nos contratos de projetos de construção civil & infraestrutura, notadamente aqueles relacionados a engenharia, tecnologia ou fornecimentos estratégicos, a limitação da responsabilidade contratual contribui significativamente para a previsibilidade financeira e para a racionalização da alocação de riscos.

Ao pactuar um teto indenizatório ou excluir certos tipos de danos, as partes conseguem mensurar com maior precisão os impactos potenciais de um inadimplemento e, assim, definir margens, seguros, garantias e condições de equilíbrio mais ajustadas à realidade das empresas.

Importa observar que a existência de cláusula limitativa de responsabilidade não desobriga o devedor inadimplente do cumprimento das obrigações principais. A indenização limitada pode, inclusive, coexistir com outras medidas legais, como a resolução do contrato, a execução específica ou a imposição de penalidades convencionais, salvo se expressamente afastadas. Tal cumulatividade, desde que compatível, é reconhecida tanto na doutrina quanto na jurisprudência como expressão legítima da tutela do interesse contratual.

Conclusão

A cláusula de limitação de responsabilidade se consolida como instrumento legítimo e necessário à moderna gestão contratual, especialmente em projetos de construção civil e infraestrutura que envolvem elevado grau de complexidade técnica e financeira. Sua admissibilidade, todavia, encontra fronteiras bem definidas no ordenamento jurídico, notadamente nos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso de direito.

Por fim, o desafio reside em compatibilizar liberdade contratual e tutela da confiança, permitindo que a engenharia jurídica avance sem afastar os valores estruturantes do direito contratual brasileiro. O equilíbrio entre eficiência econômica e justiça contratual constitui, em última análise, o fundamento que legitima a utilização dessas cláusulas no ambiente empresarial.

________

1 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. 

2 Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. 

3 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé

4 RECURSO ESPECIAL. CIVIL, PROCESSO CIVIL E COMERCIAL. CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO E REPRESENTAÇÃO COMERCIAL. EQUIPAMENTOS DE INFORMÁTICA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. 1. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 489 e 1.022 do CPC. OMISSÃO E NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. TRIBUNAL QUE SE MANIFESTOU SOBRE TODOS OS TEMAS RELEVANTES PARA A SOLUÇÃO DA LIDE. 2. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU ADSTRIÇÃO. NÃO CONFIGURAÇÃO. PEDIDO QUE NÃO DEVE SER ANALISADO APENAS DO CAPÍTULO DA PETIÇÃO INICIAL, MAS DAS QUESTÕES APRESENTADAS PELAS PARTES. INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA. 3. CLÁUSULA LIMITATIVA DE RESPONSABILIDADE. LEGALIDADE. RECONHECIMENTO. POSIÇÃO DOMINANTE DA FORNECEDORA QUE NÃO RETIRA A POSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO E COMPREENSÃO DA CLÁUSULA PELA DISTRIBUIBORA, QUE TAMBÉM SE TRATAVA DE EMPRESA DE GRANDE PORTE. DOLO NA ELABORAÇÃO DO ITEM. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. OBRIGAÇÃO EM MOEDA ESTRANGEIRA. ADMISSIBILIDADE. CONVERSÃO NO PAGAMENTO. 4. MULTA 1.026 §2º DO CPC. CABIMENTO. EMBARGOS PROTELATÓRIOS.RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO

5 Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.

Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.

Eduardo Gomes de Abreu Neto
Eduardo Abreu Neto é gerente jurídico com mais de 20 anos de experiência em grandes projetos de infraestrutura. Fundador do Advogado de Botas, atua na interface entre Direito, engenharia e negócios.

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