No campo do Direito Médico, a compreensão e o tratamento das alegações de falha na assistência à saúde exigem mais do que o simples enquadramento formal de condutas em categorias estanques. Antes de qualquer rotulação apressada, é imprescindível reconhecer a complexidade que permeia a prática clínica, onde desfechos indesejados podem ocorrer mesmo diante da atuação diligente e tecnicamente correta do profissional.
Há, ainda hoje, uma expectativa quase mítica em torno da medicina, muitas vezes alimentada por discursos sociais, midiáticos ou até mesmo jurídicos, de que o médico, por deter conhecimento técnico e acesso a instrumentos terapêuticos, seria sempre capaz de curar, aliviar e resolver qualquer quadro clínico apresentado. Nessa lógica simbólica, todo insucesso seria, por exclusão, atribuído a uma falha. Essa visão não apenas ignora os limites da ciência médica, como desumaniza o exercício profissional, tratando o médico como uma máquina infalível.
Como bem observa Júlio Cézar Meirelles Gomes (2025), “o erro médico na visão do leigo é a antítese da magia inerente aos deuses, ou de quem ungido do poder divino dispõe do poder de cura, isto é, o poder que remite o erro natural. Haja vista que o conceito de doença na medicina antiga era exatamente a versão orgânica da culpa ou expressão material do pecado. Por tradição deduz-se que aquele que cura absolve a culpa, desfaz o erro de origem do semelhante. Por isso, soa como despropósito que o médico possa ele também errar, sobretudo no exercício da cura!” (GOMES, 2025, p. 2).
Essa construção simbólica, que atravessa séculos, colide com a realidade concreta da prática médica contemporânea, na qual o sucesso de uma conduta depende não apenas da técnica empregada, mas de inúmeras variáveis: as reações individuais do organismo, o estágio da doença, as respostas imunológicas, as condições ambientais e sociais, entre tantas outras que escapam ao controle do profissional.
É dentro desse cenário, altamente complexo e multifatorial, que se insere a discussão jurídica sobre responsabilidade civil médica. O avanço da judicialização da saúde e a ampliação do acesso ao Judiciário têm trazido ao debate forense uma quantidade crescente de demandas relacionadas à insatisfação com os resultados de tratamentos e procedimentos. Não raramente, essas demandas são instruídas com laudos unilaterais, opiniões não especializadas ou apenas com a narrativa emocional do paciente ou de seus familiares.
Ocorre que, embora o CDC venha sendo frequentemente invocado para regular a relação médico-paciente, sobretudo no âmbito dos Juizados Especiais, é fundamental não perder de vista as especificidades dessa relação. Trata-se de uma prestação de serviço técnico-científico, marcada por riscos inerentes, incertezas inevitáveis e limites naturais que não se ajustam integralmente à lógica do consumo de massa ou da garantia de resultado.
Ainda que o art. 14, § 4º, do CDC reconheça a responsabilidade subjetiva do médico liberal, sua interpretação vem sendo distorcida quando se presume culpa apenas com base em fotografias ou insatisfação estética, sem considerar a existência de consentimento informado, a técnica utilizada e o caráter inerentemente incerto dos resultados em cirurgia estética.
Neste sentido, a doutrina de Sílvio de Salvo Venosa oferece uma contribuição preciosa, ao explicar:
“Cabe ao direito, hoje tendo em seu bojo o poderoso instrumento da lei do consumidor, colocar nos devidos extremos a responsabilidade civil do médico. Deve ser entendida como responsabilidade médica não somente a responsabilidade individual do profissional, mas também a dos estabelecimentos hospitalares, casas de saúde, clínicas, associações e sociedades de assistências, pessoas jurídicas, enfim, que, agindo por prepostos em atividade cientemente diluída, procuram amiúde fugir de seus deveres sociais, morais e jurídicos. O defeito ou falha da pessoa jurídica na prestação de serviços médicos independe de culpa, nos termos do art. 14 do CDC. Apenas a responsabilidade do médico, enquanto profissional liberal individual, continua no campo subjetivo (art. 14, § 4º), avaliada de acordo com o art. 186 do CC e seus princípios tradicionais.”
A responsabilização do profissional liberal, no caso, o médico, deve obrigatoriamente observar o regime da culpa. Não se pode admitir que o simples insucesso terapêutico, muitas vezes decorrente de fatores alheios à conduta do profissional, seja automaticamente interpretado como sinal de negligência, imperícia ou imprudência. A adoção acrítica de mecanismos como a inversão do ônus da prova, contribui de forma alarmante, para o desequilíbrio do sistema de justiça. Ao transformar o médico em um réu presumido, desloca-se o eixo da responsabilização do campo jurídico para o da subjetividade e do sensacionalismo. Como consequência, fomenta-se uma medicina defensiva, na qual o receio de processos judiciais supera o compromisso com o melhor interesse clínico do paciente.
Nesse cenário, a análise da responsabilidade civil médica, sobretudo nas demandas que envolvem desfechos clínicos insatisfatórios, não pode prescindir da produção de prova técnica robusta, imparcial e criteriosa. A medicina é, por definição, uma ciência de alta complexidade, permeada por fatores biológicos, psicológicos e sociais que escapam ao controle do profissional. As decisões clínicas são tomadas, em regra, sob pressão de tempo, com base nas melhores evidências disponíveis, e considerando variáveis singulares de cada organismo. Exigir, do julgador, uma avaliação autônoma sobre a correção ou não dessa conduta, sem o necessário apoio técnico especializado, é não apenas temerário, mas profundamente atentatório ao próprio devido processo legal.
Como ensina Fredie Didier Jr., “o perito deve ser um profissional com conhecimento especializado exigido para a realização da perícia. Esse profissional pode ser um autônomo legalmente habilitado (pessoa natural) ou pode ser integrante do quadro de profissionais de uma pessoa jurídica, ou de um órgão técnico, ou científico especializado” (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 267). Tal exigência decorre da necessidade de que o laudo pericial reflita, de forma clara e precisa, os elementos técnicos do caso concreto, permitindo ao juiz, que não detém formação médica, compreender as decisões clínicas adotadas e avaliar sua aderência aos protocolos e boas práticas reconhecidas pela comunidade científica.
A perícia judicial, portanto, ocupa posição de absoluta centralidade no contexto da responsabilização civil médica. É por seu intermédio que se torna possível reconstruir, com objetividade e respaldo técnico, a linha de conduta adotada pelo profissional de saúde, e aferir se houve ou não violação aos padrões éticos e técnicos vigentes à época dos fatos. Mais do que esclarecer o resultado, por vezes emocionalmente impactante, a perícia deve permitir ao juízo compreender como e por que determinado desfecho ocorreu, evitando conclusões apressadas, enviesadas ou fundamentadas exclusivamente no relato da parte autora.
Contudo, o que se tem observado, infelizmente, é a crescente banalização da prova pericial, acompanhada da aplicação cada vez mais recorrente, e muitas vezes acrítica, do precedente firmado no REsp 2.173.636/MT, julgado pela 4ª turma do STJ. Nessa decisão, de forma absolutamente excepcional, admitiu-se a possibilidade de se presumir a culpa do médico exclusivamente com base na frustração estética do resultado cirúrgico, desde que considerado desarmonioso segundo o senso comum, ou seja, a ótica do “homem médio”.
O critério do “homem médio”, contudo, padece de um grau elevado de subjetividade e fragilidade técnica. Em se tratando de padrão estético, altamente influenciado por cultura, mídia e expectativas pessoais, sua adoção como parâmetro jurídico decisivo compromete a objetividade do julgamento.
Esse julgado, que deveria ser manejado com parcimônia e aplicabilidade restrita aos casos em que há evidente deformidade ou lesão visível, passou a ser invocado em diversas ações como se autorizasse uma presunção generalizada de culpa médica sempre que o resultado estético não atenda às expectativas do paciente - ainda que essas expectativas sejam subjetivas, imprecisas ou mesmo irreais. O resultado é preocupante: cria-se um cenário de instabilidade para a prática médica, onde a técnica, o consentimento informado e a adequada execução do procedimento passam a ter menor peso do que a mera insatisfação do paciente diante do espelho.
Destaca-se inicialmente o julgado do TJ/PR - Apelação cível 0000066-40.2020.8.16.0104 - rel. juiz Substituto Carlos Henrique Licheski Klein - 9ª Câmara Cível - Julgado em 24/5/2025, Publicando em 26/5/2025. Nesse precedente, mesmo diante de laudo pericial que não apontou falha técnica na conduta médica e uma expectativa irreal da paciente, o Tribunal entendeu ser suficiente a percepção de resultado insatisfatório pelo “senso comum”, evidenciado por fotografias e outros elementos dos autos, para presumir a culpa do cirurgião em cirurgia estética. Firmou-se a obrigação de resultado, com inversão do ônus da prova em desfavor do profissional, e condenação por danos morais, estéticos e materiais, desconsiderando a adequação técnica do ato médico.
Na mesma direção, outras decisões de Tribunais estaduais passaram a aderir a essa lógica, construindo um perigoso caminho de inversão da responsabilidade subjetiva tradicionalmente atribuída ao médico, especialmente em cirurgias plásticas eletivas. Destaca-se, nesse sentido, julgado do TJ/RJ - Apelação cível 0029314-82.2020.8.19.0002, rel. des. Wilson do Nascimento Reis, 17ª Câmara de Direito Privado, julgado em 29/5/2025 e publicado em 2/6/2025, que reconhece a obrigação de resultado mesmo diante da inexistência de erro técnico no laudo pericial:
“Em cirurgias plásticas estéticas, configura-se obrigação de resultado, cabendo ao profissional atingir o fim prometido, sob pena de responsabilidade civil, conforme o art. 14, § 4º, do CDC. [...] O laudo pericial, embora não tenha apontado inadequação técnica, é perceptível para o senso comum a ocorrência de resultado insatisfatório, que restou evidenciado por fotografias e demais provas constantes nos autos. [...] A jurisprudência do STJ está consolidada quanto à irrelevância da técnica adequada quando o resultado estético prometido não é atingido, sendo perceptível para o senso comum o resultado insatisfatório. [...] Apelação conhecida e provida. Sentença reformada para julgar procedentes os pedidos, condenando o réu ao pagamento de: R$ 10.000,00 por danos morais; R$ 10.000,00 por danos estéticos; R$ 13.900,00 por danos materiais [...]”
(TJ/RJ, Apel. cív. 0029314-82.2020.8.19.0002, rel. des. Wilson do Nascimento Reis, j. 29/5/2025, publ. 2/6/2025).
Em ambos os casos, observa-se que, mesmo diante de laudo pericial tecnicamente conclusivo, ou ao menos isento de apontamentos de falha, o juízo preferiu firmar convencimento com base em fotografias, depoimentos subjetivos ou impressões visuais. Trata-se de grave deslocamento do centro probatório do processo, que ignora a técnica em prol de percepções empíricas e pouco confiáveis.
A multiplicação desses entendimentos evidencia o risco da banalização do precedente, que passa a ser reproduzido em decisões de primeira instância sem análise crítica do caso concreto. O resultado é um verdadeiro deslocamento do padrão probatório: o profissional médico, antes protegido pelo regime da responsabilidade subjetiva, passa a ser julgado segundo uma lógica de presunção de culpa, mesmo quando comprova tecnicamente que agiu com prudência, zelo e dentro dos padrões da medicina vigente.
É nesse contexto que a atuação judicial precisa ser pautada pela cautela, sob pena de legitimar um sistema de responsabilização automática que ignora o princípio da culpa e compromete não apenas a segurança jurídica do profissional de saúde, mas a própria essência do ato médico como atividade intelectual, não mecânica, e de resultado incerto
Reafirma-se, portanto, que a justa prestação jurisdicional, especialmente em matéria de responsabilidade médica, exige não apenas equilíbrio e sensibilidade, mas compromisso com a técnica. O Judiciário não pode se tornar reprodutor de expectativas sociais frustradas, sob pena de corroer as bases do direito à liberdade profissional e à boa medicina.
Por fim, importa reconhecer que a busca pela verdade real no processo judicial que trata de possível erro médico exige uma compreensão apurada da lógica assistencial e da complexidade dos atos clínicos. Isso só será possível quando a prova pericial for tratada com a seriedade que lhe é devida: como meio probatório técnico essencial, e não como simples formalidade processual.
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Bibliografia
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. v. 2. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
GOMES, Júlio Cézar Meirelles. Erro médico: reflexões. Revista Bioética, Brasília, v. 17, n. 2, p. 317–324, 2009. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/revista_bioetica/article/view/459/342. Acesso em: 20 ago. 2025.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010.