No Brasil, as cooperativas não são apenas empresas; são um modelo socioeconômico com princípios próprios, reconhecido inclusive constitucionalmente. No agronegócio, na saúde, no crédito, elas formam verdadeiros fortes, permitindo que pequenos e médios produtores e profissionais se unam para ganhar escala e competitividade. O alicerce dessa estrutura é o chamado “ato cooperativo”, um conceito jurídico que, em tese, as protege da tributação sobre o lucro, pois não visam a ele.
Por décadas, essa distinção garantiu um tratamento tributário diferenciado, permitindo que as cooperativas prosperassem em um ambiente fiscal que, para as empresas tradicionais, sempre foi um caos. Acontece que a reforma tributária, com a chegada do IVA Dual (IBS e CBS), promete acabar com todas as exceções e regimes específicos. A pergunta que tira o sono dos líderes cooperativistas é inevitável: com essa simplificação forçada, as cooperativas vão perder sua identidade tributária e, consequentemente, a competitividade?
Este artigo é um alerta e um guia para entender como a reforma tributária pode redefinir o futuro das cooperativas, de sua base de cooperados e da própria essência do ato cooperativo.
O ato cooperativo
A grande sacada do sistema cooperativo é que as operações realizadas entre a cooperativa e seus cooperados (o famoso ato cooperativo) não configuram uma relação de mercado e, portanto, não geram lucro. Isso historicamente as eximiu de tributos como IRPJ e CSLL sobre esses resultados. Além disso, PIS e COFINS possuem regras específicas, muitas vezes mais benéficas.
A reforma tributária chega com a promessa da não cumulatividade plena e da incidência do IVA Dual sobre toda e qualquer operação. A questão crucial é: como o ato cooperativo será enquadrado nesse novo modelo?
- IVA Dual (IBS/CBS) e o Ato Cooperativo: Se a cooperativa, ao receber produtos ou serviços de seus cooperados, for tratada como uma empresa comprando de um fornecedor para revender, e o cooperado como um vendedor normal, a dinâmica muda. A cooperativa pagará o IBS/CBS na entrada, e o cooperado poderá (ou não) se creditar desse imposto. A apuração de "excedentes" ou "sobras" da cooperativa (que podem ser distribuídos aos cooperados) será vista como lucro? Se sim, essa será uma mudança radical.
- Glosa de Créditos: Se o ato cooperativo for desonerado (ou tratado com alíquota reduzida), mas a cooperativa vender para o mercado externo (não cooperados) com alíquota cheia, como se dará o direito a crédito dos insumos adquiridos? Há o risco de glosa de créditos ou de burocracia excessiva para comprovar a não cumulatividade, gerando um passivo financeiro.
A ausência de clareza sobre o tratamento do ato cooperativo na reforma tributária gera uma imensa insegurança jurídica. O que hoje é uma fortaleza, pode se tornar uma armadilha burocrática e financeiramente insustentável.
Aumento da Carga Tributária
Historicamente, o modelo cooperativo ofereceu vantagens que iam além da simples agregação de produtos. A eficiência tributária era uma delas. Se essa eficiência for perdida, o que sobra?
- Impacto no Cooperado: O produtor rural que antes via na cooperativa uma forma de escoar sua produção com um custo tributário otimizado, pode se ver diante de um cenário onde a cooperativa se torna apenas mais um atravessador, ou, pior, um encargo. A adesão ao cooperativismo pode diminuir.
- Competitividade: As grandes corporações (tradings, indústrias) que operam sem a complexidade do ato cooperativo já possuem vantagens de escala. Se a reforma tributária eliminar o diferencial tributário das cooperativas, elas se verão em desvantagem ainda maior, lutando em um terreno fiscal que as nivelará por baixo.
- Repercussões: Qualquer aumento de carga tributária na cadeia cooperativa (agronegócio, por exemplo) será, inevitavelmente, repassado ao consumidor final. Isso pode impactar a inflação e o poder de compra da população, desvirtuando um dos pilares do cooperativismo: a busca por preços justos.
Rota de fuga?
A história das cooperativas é de resiliência e adaptação. A reforma tributária não será diferente. Se o cerco apertar e a carga tributária efetiva aumentar, podemos esperar movimentos estratégicos:
- Diversificação e atos não cooperativos: Cooperativas podem buscar cada vez mais a geração de resultados via atos não cooperativos, que já são tributados como empresas comuns, minimizando a complexidade do ato cooperativo sob o novo IVA.
- Verticalização: Aprofundar a integração vertical, controlando mais etapas da cadeia de valor, pode ser uma forma de otimizar a geração e o aproveitamento de créditos do IVA Dual.
- Novas estruturas e redes: Formação de “redes” de cooperativas ou associações mais complexas para ganho de escala e poder de lobby em Brasília, buscando influenciar as leis complementares que definirão o seu futuro.
- Desintermediação e informalidade: Em um cenário de tributação insustentável, o cooperado pode buscar rotas alternativas para escoar sua produção. A venda direta (Pessoa Física), o escambo ou até mesmo a negociação em criptomoedas para transações específicas podem surgir como opções, tentando driblar a formalidade que se tornou excessivamente onerosa.
Advertência: É fundamental que as cooperativas, com sua base de cooperados e sua responsabilidade social, busquem soluções estritamente dentro da legalidade. A reputação é um ativo valiosíssimo, e a busca por atalhos ilegais em um cenário de reforma tributária e maior controle do Fisco pode ter consequências catastróficas.
Conclusão.
A reforma tributária não veio para acabar com as cooperativas, mas para desafiá-las a redefinir seu papel e sua estratégia. O ato cooperativo, um dos pilares do movimento, precisa de uma regulamentação clara e protetiva para não perder sua razão de ser.
Para os líderes cooperativistas, sugere-se
- Lobby unificado: É imperativo que as grandes representações do cooperativismo (OCB, confederações setoriais) atuem de forma incisiva e com dados técnicos na elaboração das leis complementares. Não basta pedir a manutenção; é preciso propor a melhor forma de integrar o ato cooperativo ao IVA Dual.
- Modelagem: Simule o impacto da reforma tributária nos custos e preços de seus produtos e serviços. Quais alíquotas seriam sustentáveis? Onde estão os riscos de glosa de crédito?
- Revisão de Estruturas: Avalie a estrutura societária e operacional de sua cooperativa. Ela está preparada para a nova realidade? Há oportunidades de otimização?
A reforma tributária é uma realidade para todos nós. As cooperativas têm a chance de emergir mais fortes e adaptadas, ou de se verem relegadas a um papel secundário. A escolha se fará na inteligência e na proatividade da sua liderança.