Migalhas de Peso

Poder da minoria e a destituição do sócio-majoritário administrador

A possibilidade de destituição do sócio-majoritário por justa causa fortalece a governança, preserva a empresa e revela a evolução ética do Direito Societário brasileiro.

15/10/2025
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A convivência entre sócios, sobretudo nas sociedades limitadas, não se sustenta apenas na métrica do capital social. A estrutura societária repousa sobre uma base ética que antecede e condiciona o exercício do poder: confiança recíproca, lealdade e o compromisso com a preservação da empresa. Quando tais fundamentos são comprometidos, o simples peso das quotas deixa de ser critério suficiente para justificar a permanência de quem, no exercício da administração, compromete a integridade e a continuidade da sociedade.

À luz da doutrina e da jurisprudência contemporâneas, o Direito brasileiro já reconhece, com clareza crescente, que a minoria do capital social pode destituir o sócio-majoritário do cargo de administrador, desde que demonstrada justa causa. A medida, nesses casos, não implica exclusão do sócio do quadro societário, tampouco afeta sua titularidade sobre as quotas. Trata-se de uma medida cirúrgica, de natureza funcional, que visa proteger a empresa - não punir o sócio em sua qualidade de investidor.

A distinção entre exclusão do sócio e destituição do administrador é conceitualmente essencial. A exclusão implica retirada definitiva do quadro societário, com apuração de haveres e impacto patrimonial. Já a destituição, mais sutil, afasta somente o exercício da função de administrar - sem atingir o direito de propriedade. Por isso, é equivocada a alegação de que a destituição violaria o contrato social ou desrespeitaria a proporcionalidade do capital. Ao contrário: ela serve justamente para restabelecer o equilíbrio funcional da sociedade quando a administração se torna lesiva ao seu objeto social ou aos seus sócios.

O art. 1.063, §1º, do CC, em sua redação anterior à reforma de 2019, previa quórum de dois terços do capital social para destituir o administrador nomeado no contrato social. Uma leitura literal conduziria à conclusão de que o sócio-majoritário estaria blindado contra qualquer tentativa de destituição - mesmo diante de faltas graves. Essa visão, porém, não resiste à interpretação sistemática e teleológica da norma: o quórum qualificado aplica-se às destituições imotivadas (ad nutum). Havendo justa causa, não há razão para se exigir maioria qualificada. A maioria simples, desde que lastreada em fundamentos objetivos e formalizada regularmente, é plenamente legítima.

Foi esse o entendimento adotado pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, no julgamento do agravo de instrumento 2138455-86.2015.8.26.0000. No caso, a maioria simples dos sócios deliberou pela destituição do administrador, cuja condução havia mergulhado a sociedade em crise econômico-financeira, com intervenção da ANS e rejeição de contas. O relator designado, desembargador Carlos Alberto Garbi, reconheceu que, estando presentes os elementos caracterizadores da justa causa, não há óbice à destituição por maioria simples - e que, nesse cenário, preservar a sociedade prevalece sobre preservar a vontade do controlador.

Essa lógica de proteção institucional foi posteriormente reforçada pelo legislador. A lei 13.792/19 reduziu o quórum legal para a destituição ad nutum do administrador nomeado no contrato social, exigindo a maioria absoluta do capital social (salvo estipulação contratual em contrário). A mesma norma também simplificou a exclusão extrajudicial de sócios em sociedades compostas por apenas dois sócios, contribuindo para a agilidade na solução de conflitos internos.

A destituição extrajudicial do administrador por justa causa revela-se, portanto, como um mecanismo especialmente eficaz e estratégico para a minoria societária. Permite que os sócios minoritários restabeleçam a direção da empresa de forma célere, objetiva e compatível com a gravidade da situação, sem necessidade de recorrer ao Judiciário - cuja morosidade, em muitos casos, comprometeria irremediavelmente a continuidade das atividades empresariais. Evita-se, assim, o desgaste emocional, financeiro e institucional que frequentemente acompanha longas disputas judiciais, garantindo uma resposta proporcional, legítima e imediata aos desvios de conduta do gestor.

A função de administrar uma sociedade é, por sua própria natureza, fiduciária. Os arts. 1.011 e 1.016 do CC impõem ao administrador os deveres de diligência, lealdade, transparência e alinhamento com os interesses sociais. Quando tais deveres são violados - por omissão grave, desvio de finalidade, má gestão ou conflito de interesses -, a confiança que legitimava o exercício da função se desfaz. E com ela se desfaz também o próprio título que autorizava o administrador a conduzir os rumos da empresa. O poder de gerir não é prerrogativa estática: existe enquanto perdurar a confiança dos sócios e o cumprimento dos deveres legais e contratuais.

A destituição, nessas circunstâncias, não apenas é admissível - ela se impõe como medida de proteção da empresa e de seu corpo societário. Recusar à minoria esse poder corretivo seria submeter a sociedade a uma espécie de autocracia empresarial, incompatível com os princípios modernos de governança e com o próprio espírito da atividade econômica organizada. Não há democracia societária onde a minoria é obrigada a assistir passivamente à deterioração da empresa por atos de um administrador inerte, abusivo ou incompetente.

Importa, no entanto, sublinhar que a legitimidade do ato de destituição exige o respeito a um mínimo de formalidade. A deliberação deve ser regularmente convocada, com pauta clara, fundamentação precisa, lavratura de ata e, sempre que possível, acervo probatório das condutas imputadas. É recomendável, ainda, que ao administrador seja assegurada a oportunidade de se manifestar sobre as acusações, sob pena de nulidade por violação ao contraditório. Essas precauções não representam um ritualismo excessivo, mas um requisito de segurança jurídica: são o que diferencia uma decisão legítima de um gesto impulsivo ou revanchista.

Ao reconhecer que a destituição extrajudicial por justa causa pode alcançar inclusive o sócio-majoritário, o Direito brasileiro fortalece os mecanismos de autorregulação societária e reafirma os valores que devem orientar toda administração responsável: ética, confiança, transparência e compromisso com a função social da empresa. Trata-se de uma evolução normativa e jurisprudencial que oferece à minoria uma ferramenta real de proteção - e que devolve à sociedade o protagonismo sobre o seu próprio destino.

Autor

Mathias Bueno Advogado, especialista em arbitragem internacional, pós-graduado em Direito Empresarial e sócio do Bueno Cavaggioni Advogados

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