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Considerações jurídicas sobre homicídio e feminicídio

A vida humana é bem jurídico indisponível, protegida por meio do rol dos direitos individuais previstos na Constituição Federal, bem como a tutela dos crimes contra a vida do CP, em especial o homicídio e feminicídio.

20/10/2025

O Estado como entidade política, jurídica e soberana tem por finalidade a preservação do bem comum, por meio da tutela da pessoa do individuo propriamente dito. Sendo inviolável a vida deste, de acordo com o caput do art. 5º da Constituição Federal:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

Seguindo essa linha de raciocínio, torna-se totalmente inócua o consentimento do ofendido para perder a sua vida, prevalecendo, assim, à vontade do legislador, conforme previsão dos crimes contra a vida, no Capítulo I do Titulo I do CP, que tutela os crimes contra a vida.

Considerando a importância dos bens jurídicos protegidos pela normal penal, o crime de homicídio inaugura a Parte Especial do CP, com base na redação do art. 121, que aduz:

“Art. 121. Matar alguem:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.”

Podemos conceituar o homicídio como a morte de uma pessoa que ocorre pela conduta de outrem.

Atentamos para o núcleo do tipo, que consiste em matar, o que se traduz em eliminar ou destruir a vida humana, que pode ocorrer por qualquer meio capaz de executar tal ato.

O tipo do caput do art. 121, não especifica a finalidade da conduta do agente, o que subentende que o dolo será genérico, o qual abrange os dolo direito e eventual, devido elemento subjetivo do tipo.

O homicídio, por se tratar de crime material, se consuma com o resultado naturalístico, ou seja, com a morte da vítima. A depender do caso concreto, pode ainda ser classificado como crime não transeunte, do qual será imprescindível a realização do exame de corpo de delito1, por meio de necropsia2. Caso não encontrado o corpo da vitima, por exemplo, no caso de afogamento no mar, poderá ser realizado o exame de corpo de delito indireto3.  

No que tange ao processo, a ação será publica incondicionada e por se tratar de crime contra a vida, o julgamento será pelo Tribunal do Júri, conforme art. 5º, XXXVIII da Constituição Federal c/c com art. 74, § 1º do CPP.

O feminicídio, por sua vez, inicialmente na legislação penal era uma qualificadora do crime de homicídio. No entanto, com o advento da lei 14.994/24 passou a ser um tipo penal autônomo, previsto no art. 121-A do CP, que dispõe:

“Art. 121-A. Matar mulher por razões da condição do sexo feminino:

Pena – reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos.

As razões do sexo feminino são previstas na norma penal explicativa prevista no § 1º do referido artigo, que aduz:

§ 1º Considera-se que há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve:

I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.”

Tal crime, fora ainda elencado no rol dos crimes hediondos4.

Por se tratar de um tipo incriminador cuja pena é mais elevada, não pode retroagir, pois caracteriza a novatio legis in pejus. Sendo aplicado aos crimes cometidos a partir de nove de outubro de 2024. A ultratividade da lei penal benéfica, só poderá ocorrer se o fato se concretizou antes do advento da lei 14.994/24.

Cumpre informar que o crime em questão, quando cometido de acordo com a previsão do § 1º, inciso I, é norma penal em branco, pois o conceito de violência domestica está previsto no art. 5º da lei 11.340/065.

No outro tipo, do inciso II, feminicídio misógino, o qual se subdivide nas situações de menosprezo e discriminação. O menosprezo está atrelado ao pouco ou nenhum apreço, estima ou consideração a condição de mulher. Já a discriminação esta relacionada à distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo feminino, impossibilitando o exercício de direitos na sociedade.

Em ambas as situações do inciso II, não se enquadram no âmbito de violência domestica, pois o crime pode ser cometido contra mulher que o agente sequer conhecia (feminicídio não íntimo), mas a morte ocorre pelo fato da vítima ser mulher.

Além disso, tais situações levam em consideração o sentimento negativo do agente em relação ao sexo feminino, o que pode motivar um comportamento homicida.

As condições do sexo feminino são de caráter objetiva, pois independe do motivo pelo qual o agente praticou o crime e não há finalidade subjetiva especifica prevista na lei, o que reforça que as hipóteses previstas no tipo (violência domestica e menosprezo a condição de mulher) prevalecem.

Nada obsta serem aplicadas circunstâncias agravantes subjetivas relacionadas à motivação do crime, como motivo fútil ou torpe.

Acerca do motivo do feminicídio, Guilherme de Souza Nucci aduz:

“A sua motivação é variada, podendo fazê-lo por ódio, raiva, ciúme, orgulho ferido, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim diversas causas, que merecem a conceituação de futilidade ou torpeza.6

O crime de feminicídio tem como elemento subjetivo o dolo, que pode ser direto quando o agente quer diretamente a produção do resultado. Podendo ainda o dolo ser eventual, quando o agente assume o risco de produzir o resultado, muito embora não quisesse produzi-lo de início.

No que concerne a modalidade culposa inexiste, pois não há previsão legal e conforme redação do art. 18, parágrafo único7 do CP, os crimes, em regra, são punidos quando praticados dolosamente. A culpa deve estar expressa no tipo.

Admite-se a tentativa8, pois é crime plurissubsistente, no qual as condutas podem ser fracionadas. Logo, o delito pode não se concretizar por circunstâncias contrarias a vontade do feminicida.  

Trata-se de crime comum, no qual pode ser praticado por qualquer pessoa. Muito embora o sujeito ativo, via de regra, seja o homem, nada obsta que seja uma mulher, como por exemplo, mãe, filha ou irmã praticar feminicídio, desde que comprovada às hipóteses do § 1º do art. 121-A do CP. Nesse sentido Cleber Masson aduz:

Em regra, o sujeito ativo é homem, mas nada impede seja uma mulher, desde que o delito, seja cometido por razões de condições de sexo feminino.9

Cumpre informar que haverá situações em que a morte de uma mulher ocorra decorrente de um crime, porem não será considerada feminicídio, mas sim femicídio, como por exemplo, o homem matar a mulher, comparsa em crime de furto, em decorrência de desentendimentos na divisão dos bens furtados, respondendo assim por homicídio, nos termos do art. 121, § 2°, inciso V do CP.

Por ser crime material, no qual se exige o resultado naturalístico que ocorre com a morte a vitima. De semelhante modo ao homicídio, aplica-se a realização do exame de corpo de delito, por meio de necropsia para atestar a causa da morte. Podendo ainda ser realizado o exame de corpo de delito indireto, caso não encontrado o corpo.

No que concerne a condição feminina da vítima por razões de gênero, a interpretação deve ser restrita, o que afasta a interpretação extensiva do termo e analogia in malan partem.  

O julgamento será realizado pelo Tribunal do Júri, pois trata-se de crime contra a vida.

No crime de feminicídio não há benefícios a serem aplicados, pois não há previsão no tipo incriminador. Nada impede que seja alegada pela defesa as circunstancias atenuantes genéricas do inciso III, do art. 65 do CP.

E quanto à pena cominada no delito, o cumprimento será inicialmente em regime fechado10, ainda que seja aplicada a pena mínina.

Um dos efeitos da condenação é a incapacidade para o exercício do poder familiar, tutela ou curatela, conforme artigo 92, inciso II11 do CP.

Por fim, caso a mulher, vítima do feminicídio, deixar filhos ou dependentes menores de dezoito anos, poderá ser paga uma pensão especial, conforme decreto 12.636/2512 que regulamenta a lei 14.717/23.

O tipo penal do feminicídio, além de procurar estabelecer uma igualdade material, visa aumentar a proteção estatal frente à impunidade dos crimes praticados contra a vida das mulheres, independente do contexto social a qual estão inseridas.

A tutela dos crimes contra a vida tem por finalidade proteger o ser humano na sua individualidade.

_______

1 Código de Processo Penal: Art. 158.  Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.

2 Lei 8.501/92: Art. 3º:

...

§ 2° Se a morte resultar de causa não natural, o corpo será, obrigatoriamente, submetido à necropsia no órgão competente.

3 Código de Processo Penal: Art. 167.  Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.

4 Lei 8.072/90: Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:  

...

I-B – feminici'dio (art. 121-A); 

5 Lei 11.340/2006: Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

6 Código penal comentado / Guilherme de Souza Nucci. – 25. ed., rev. e atual. – [2.Reimp.] -  Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 691.

7  Código Penal: Art. 18:

...

Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

8 Código Penal: Art. 14 - Diz-se o crime:

...

II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

9 Direito penal: parte especial (arts. 121 a 212) / Cleber Masson. – 18. ed., rev., atual. e ampl. – [ 2 . Reimp.] -  Rio de Janeiro: Método, 2025. p.  57.

10 Código Penal: Art. 33:

...

§ 2º As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:

a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado.

11 Código Penal: Art. 92 - São também efeitos da condenação:

...

II – a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente, tutelado ou curatelado, bem como nos crimes cometidos contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A deste Código;

12 Decreto nº 12.636/2025: Art. 1º A pensão especial instituída pela Lei nº 14.717, de 31 de outubro de 2023, é a garantia de um salário mínimo mensal aos filhos e aos dependentes menores de dezoito anos de idade na data do óbito de mulher vítima de feminicídio, crime tipificado no art. 121-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, cuja renda familiar mensal per capita seja igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

Luiz Cezar Yara
Advogado Coordenador do escritório Almeida Santos Advogados.

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