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Selos fiscais de bebidas vão muito além de controle tributário, são política sanitária

O controle das bebidas destiladas protege consumidores, permite rastreabilidade e combate produtos clandestinos e adulterados.

20/10/2025

Introdução

O selo fiscal que lacra garrafas de bebidas destiladas no Brasil carrega uma função que vai muito além da tributação. Produzidos pela Casa da Moeda do Brasil e controlado pela Receita Federal, o denominado “selo de IPI” é um dos poucos instrumentos estatais capazes de unir, num mesmo ato, fiscalização tributária, rastreabilidade industrial e proteção da saúde pública.

Não se trata, portanto, de uma simples “etiqueta de imposto”, mas sim de uma barreira de segurança contra a circulação de destilados clandestinos e adulterados - justamente aqueles que estão associados a intoxicações por metanol, que têm causado cegueira e mortes. Em tempos de incremento de casos suspeitos no país, vale reconhecer o selo fiscal como mecanismo regulatório com impactos tributários e, principalmente, sanitários.

Reconhecer o selo fiscal como política sanitária é compreender que, em um país de dimensões continentais e mercado informal ativo, o combate ativo à produção ilegal de bebidas adulteradas depende também - senão prioritariamente - da eficiência dos instrumentos de controle.

O selo fiscal de bebidas e como ele funciona

Determinadas bebidas comercializadas no Brasil, especialmente as destiladas, são obrigadas a portar o selo de IPI previsto na lei 4.502/1964 e regulamentado pela Receita Federal. A produção e o fornecimento desses selos são de competência da CMB - Casa da Moeda do Brasil, que incorpora elementos gráficos e tecnológicos destinados a dificultar ou impedir falsificações e reutilizações.

Cada selo corresponde a uma unidade de produto legalmente produzida, com origem e destino identificáveis. O que parece um detalhe técnico, na prática, representa um elo de rastreabilidade que permite saber onde, quando e por quem determinada garrafa foi fabricada e selada.

Em mercados onde o consumo de bebidas adulteradas ainda é expressivo, esse tipo de marcação dificulta a atuação de produtores informais, reduz o incentivo à sonegação e fortalece a capacidade de resposta do Estado diante de riscos sanitários.

Direito do consumidor e regulação sanitária

O CDC (art. 6º, I) garante o direito à segurança e à informação sobre produtos potencialmente nocivos. Já a lei 9.782/1999 institui a Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária e atribui à autarquia a função de controlar bens que possam comprometer a saúde pública. Por sua vez, o dever de afixar selos confeccionados para facilitar a fiscalização sobre determinados produtos encontra fundamento legal na lei 4.502/1964 (art. 46).

Essas normas, quando lidas em conjunto, mostram que a fronteira entre o fiscal e o sanitário é porosa. A existência de um selo, que autentica a origem da bebida e permite sua rastreabilidade, é uma forma indireta de proteção à saúde. Obviamente, o selo não detecta substâncias tóxicas, mas dificulta que o produto adulterado alcance o consumidor, justamente ao inviabilizar a circulação de garrafas não registradas.

Do ponto de vista regulatório, o selo cumpre papel semelhante ao de uma etiqueta de rastreio em medicamentos: é um sinal físico de que aquela unidade passou pelo controle oficial, traduzindo em linguagem visual a política pública de prevenção de danos.

O alerta do metanol e o papel do selo

As recentes notícias de intoxicações por metanol acenderam um alerta nacional. O Ministério da Saúde confirmou inúmeros casos e quase uma dezena de óbitos - até a data da elaboração deste artigo - em decorrência do consumo de destilados adulterados.

Nessas circunstâncias, o selo de IPI da Casa da Moeda torna-se mais uma linha de defesa visível. Como já mencionado anteriormente, por si só, a marcação não elimina o risco, mas delimita a diferença entre o produto sob controle estatal e aquele à margem da lei. O selo, portanto, não é apenas um resquício de burocracia, mas sim uma forma eficaz de garantir rastreabilidade em um setor sensível a fraudes.

Além disso, a marcação oficial deve ser vista sob a ótica da gestão de riscos públicos. O selo cria mais um obstáculo para o ingresso de produtos ilegais no mercado, reduzindo o espaço de operação das fábricas clandestinas. Mais que isso, oferece trilhas de auditoria e verificação: cada selo possui número, cor e holografia próprios, que podem ser conferidos por fiscais e comerciantes.

Em suma, quando há suspeita de contaminação, o selo permite rastrear lotes, recolher produtos e identificar responsabilidades. Em termos de saúde pública, isso significa tempo, e tempo, nesses casos de intoxicação em massa, como o cenário atual, costuma ser a diferença entre o número de vidas preservadas ou não.

Portanto, ao contribuir para reduzir a exposição da população a produtos de risco elevado, pode-se afirmar que o selo de controle materializa o dever de proteção estatal previsto no art. 196 da Constituição Federal.

Fragilidades e desafios

Todavia, nem tudo são flores. Nenhum instrumento de controle é imune a fraudes. O mercado informal evolui rápido e há diversos casos de selos falsificados, o que fragiliza a credibilidade do sistema. O art. 296, §1º, do CP criminaliza a falsificação de selo ou sinal público, reconhecendo o dano institucional que tal conduta provoca. Ademais, trata-se de crime de mera conduta, porque o simples ato de falsificar já compromete a confiança social no sistema.

Ainda assim, a resposta não pode ser apenas penal. É preciso investir em modernização e integração de dados para que o os selos continuem exercendo sua função de barreira de entrada. A prevenção da falsificação deve caminhar junto com a facilidade de verificação, e isso requer inovação.

É inegável que o sistema de controle de bebidas no Brasil possui espaço para aprimoramento. Alguns caminhos a seguir são exemplos de como essa evolução pode acontecer na prática:

  1. Verificação digital - incluir QR Codes e números seriais únicos nos selos checáveis, conectados a bases públicas da Receita Federal, permitindo que qualquer cidadão, em especial o consumidor final, verifique a autenticidade pelo celular e reporte irregularidades, a exemplo do recente e salutar programa “Na Palma da Mão” implementado pelo Inmetro.

Assim, qualquer pessoa poderá verificar a procedência do produto, comunicando as autoridades em caso de irregularidade, de modo que consumidores e estabelecimentos estejam no mesmo lado da fiscalização, aproximando a política de controle da vida cotidiana.

  1. Revisão tecnológica do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) – restabelecimento do sistema, que foi descontinuado pela Receita Federal em 2016, tendo o TCU determinado recentemente seu retorno às operações em 2025, mas agora sob novas bases digitais e interoperáveis, garantindo transparência sem onerar o setor produtivo.

Atualmente, diante dos avanços tecnológicos verificados em outros mercados regulados e rastreados, como o setor de cigarros, por exemplo, é possível, sem grandes custos, aperfeiçoar o Sicobe, de forma que as informações de rastreabilidade sejam compartilhadas em tempo real com outros órgãos de controle sanitário e de defesa do consumidor (Anvisa, Procons etc.).

Considerações finais

Nas últimas décadas, a expertise da Casa da Moeda aperfeiçoou a tecnologia gráfica dos selos, a Receita Federal aprimorou seus sistemas de controle, e, ainda assim, a sociedade ainda vê o alto custo humano das bebidas adulteradas. O desafio que se impõe agora é transformar o selo em instrumento de verificação acessível, que permita, além das autoridades competentes, ao consumidor confirmar a procedência e denunciar suspeitas.

O combate a episódios de intoxicação por metanol não se faz apenas com apreensões, mas com organização da confiança. E é justamente isso que o selo da Casa da Moeda simboliza: uma camada de proteção entre o lícito e o ilícito, entre o produto legal e o letal. Em tempos de crises sanitárias, selar é também - e principalmente - cuidar.

Marcelo Ludolf
Advogado, sócio do escritório Basilio Advogados. Mestre em Direito pela Fundação Getúlio Vargas, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, graduado em Direito pela PUC-Rio.

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