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O que se entende por ausência de risco nas medidas protetivas?

A ausência de risco nas medidas protetivas carece de critérios objetivos, transformando-se em conceito vago que, na prática, vincula sua duração ao desejo unilateral da suposta vítima.

28/11/2025

1. Introdução

A lei 11.340/06, conhecida como lei Maria da Penha, prevê que as medidas protetivas sejam concedidas e mantidas enquanto persistir a situação de risco. Em tese, trata-se de um critério razoável: garantir proteção à mulher enquanto houver ameaça concreta ou iminente. No entanto, a expressão “enquanto perdurar a situação de risco” revela uma fragilidade jurídica, por ser demasiadamente vaga e carente de parâmetros objetivos. Essa ambiguidade abre espaço para decisões arbitrárias, nas quais a manutenção das restrições não se apoia em critérios técnicos, mas, na maioria das vezes, no desejo unilateral da suposta vítima. O presente ensaio busca analisar criticamente o que se entende por ausência de risco nas medidas protetivas e a necessidade de maior objetividade para assegurar equilíbrio entre proteção e direitos fundamentais.

2. A clareza inicial sobre o risco atual

A concessão de medidas protetivas baseia-se na identificação de uma situação atual de risco. Esse aspecto é relativamente pacífico: quando há violência recente ou ameaça iminente, o juiz deve deferir restrições como afastamento, proibição de contato ou suspensão de visitas. A lei é clara nesse ponto, reforçando o caráter emergencial e preventivo da medida. Assim, a ligação entre risco e aplicação inicial da medida não gera maiores controvérsias.

3. O problema da manutenção indefinida

A dificuldade surge quando se trata de definir a cessação do risco. A lei e a jurisprudência estabelecem que as medidas perduram enquanto persistir o risco, mas não esclarecem o que efetivamente caracteriza a sua cessação. Dessa forma, a expressão se torna um enunciado vazio: afirma algo sem explicar como deve ser verificado. Na prática, o resultado é a manutenção indefinida das restrições, sem que haja critérios objetivos de avaliação, apenas com base no desejo da suposta vítima.

4. A vagueza como instrumento de poder

A ambiguidade da expressão “enquanto perdurar a situação de risco” funciona, muitas vezes, como um artifício para delegar à própria suposta vítima a definição sobre a continuidade da medida. Isso ocorre porque, sem parâmetros claros, a palavra da suposta vítima acaba sendo a única fonte de informação para sustentar a ideia de que o risco ainda não cessou. Tal prática transfere ao relato unilateral um peso absoluto, transformando-o em critério decisório quase exclusivo.

5. O risco de vinculação ao desejo da vítima

Embora a lei não possa dizer expressamente que as medidas vigorarão até que a suposta vítima diga que cessou, a ausência de critérios objetivos faz com que, na prática, as protetivas continuem sendo mantidas até que a suposta vítima queira, transformando as restrições em ato de desejo. Sempre que a vítima declara que ainda se sente em risco, as medidas são mantidas, sem a necessidade de maiores perquirições. Essa vinculação, disfarçada sob a retórica jurídica da “persistência do risco”, coloca a pessoa submetida as restrições em posição de vulnerabilidade extrema, pois sua liberdade depende da percepção subjetiva da suposta vítima, e não de uma análise judicial técnica e equilibrada.

A manutenção das medidas sem critérios claros viola o princípio da proporcionalidade. Restrições severas a direitos fundamentais, como o afastamento do lar ou a impossibilidade de contato com os filhos, não podem se prolongar indefinidamente com base em conceitos vagos. A proporcionalidade exige avaliação concreta: se o risco cessou ou não pode ser comprovado de forma objetiva, a medida deve ser revista ou extinta. Do contrário, estamos transferindo a jurisdição ao império do desejo e não da razão.

6. A necessidade de critérios objetivos claros

Urge a criação de parâmetros objetivos claros que orientem a verificação da cessação do risco pelo magistrado(a). Isso poderia ser feito por meio de prazos determinados para revisão periódica das medidas, exigência de elementos mínimos que indiquem a persistência da ameaça e protocolos claros que evitem a perenização injustificada das restrições. Sem esses critérios, o instituto das medidas protetivas perde credibilidade, tornando-se vulnerável ao uso estratégico e abusivo.

7. O papel do juiz como filtro garantidor

O juiz não pode se limitar a replicar a percepção da vítima, mas deve atuar como guardião dos direitos fundamentais em conflito. Sua função é equilibrar a necessidade de proteção com a preservação das garantias da pessoa intimada. Isso exige que o magistrado vá além da mera retórica da “persistência do risco” e fundamente suas decisões em elementos concretos. Somente assim é possível evitar que medidas emergenciais se transformem em restrições indefinidas, sem base fática real.

8. Conclusão

A ausência de critérios objetivos sobre o que significa o fim da situação de risco nas medidas protetivas é um dos pontos mais sensíveis da lei Maria da Penha. A expressão “enquanto perdurar o risco” é vaga e abre espaço para a manutenção arbitrária de restrições, frequentemente atrelando sua vigência à vontade unilateral da suposta vítima. Para que as medidas cumpram sua finalidade legítima, é essencial estabelecer parâmetros claros, revisões periódicas e avaliação concreta da atualidade do risco. O juiz deve assumir papel ativo nesse filtro, assegurando proporcionalidade e evitando que medidas emergenciais se convertam em sanções permanentes. Assim, protege-se a mulher em situação real de violência sem sacrificar, de forma desarrazoada, os direitos fundamentais da pessoa intimada.

Júlio Cesar Konkowski da Silva
Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.

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