1. Introdução
A lei 11.340/06, conhecida como lei Maria da Penha, prevê que as medidas protetivas sejam concedidas e mantidas enquanto persistir a situação de risco. Em tese, trata-se de um critério razoável: garantir proteção à mulher enquanto houver ameaça concreta ou iminente. No entanto, a expressão “enquanto perdurar a situação de risco” revela uma fragilidade jurídica, por ser demasiadamente vaga e carente de parâmetros objetivos. Essa ambiguidade abre espaço para decisões arbitrárias, nas quais a manutenção das restrições não se apoia em critérios técnicos, mas, na maioria das vezes, no desejo unilateral da suposta vítima. O presente ensaio busca analisar criticamente o que se entende por ausência de risco nas medidas protetivas e a necessidade de maior objetividade para assegurar equilíbrio entre proteção e direitos fundamentais.
2. A clareza inicial sobre o risco atual
A concessão de medidas protetivas baseia-se na identificação de uma situação atual de risco. Esse aspecto é relativamente pacífico: quando há violência recente ou ameaça iminente, o juiz deve deferir restrições como afastamento, proibição de contato ou suspensão de visitas. A lei é clara nesse ponto, reforçando o caráter emergencial e preventivo da medida. Assim, a ligação entre risco e aplicação inicial da medida não gera maiores controvérsias.
3. O problema da manutenção indefinida
A dificuldade surge quando se trata de definir a cessação do risco. A lei e a jurisprudência estabelecem que as medidas perduram enquanto persistir o risco, mas não esclarecem o que efetivamente caracteriza a sua cessação. Dessa forma, a expressão se torna um enunciado vazio: afirma algo sem explicar como deve ser verificado. Na prática, o resultado é a manutenção indefinida das restrições, sem que haja critérios objetivos de avaliação, apenas com base no desejo da suposta vítima.
4. A vagueza como instrumento de poder
A ambiguidade da expressão “enquanto perdurar a situação de risco” funciona, muitas vezes, como um artifício para delegar à própria suposta vítima a definição sobre a continuidade da medida. Isso ocorre porque, sem parâmetros claros, a palavra da suposta vítima acaba sendo a única fonte de informação para sustentar a ideia de que o risco ainda não cessou. Tal prática transfere ao relato unilateral um peso absoluto, transformando-o em critério decisório quase exclusivo.
5. O risco de vinculação ao desejo da vítima
Embora a lei não possa dizer expressamente que as medidas vigorarão até que a suposta vítima diga que cessou, a ausência de critérios objetivos faz com que, na prática, as protetivas continuem sendo mantidas até que a suposta vítima queira, transformando as restrições em ato de desejo. Sempre que a vítima declara que ainda se sente em risco, as medidas são mantidas, sem a necessidade de maiores perquirições. Essa vinculação, disfarçada sob a retórica jurídica da “persistência do risco”, coloca a pessoa submetida as restrições em posição de vulnerabilidade extrema, pois sua liberdade depende da percepção subjetiva da suposta vítima, e não de uma análise judicial técnica e equilibrada.
A manutenção das medidas sem critérios claros viola o princípio da proporcionalidade. Restrições severas a direitos fundamentais, como o afastamento do lar ou a impossibilidade de contato com os filhos, não podem se prolongar indefinidamente com base em conceitos vagos. A proporcionalidade exige avaliação concreta: se o risco cessou ou não pode ser comprovado de forma objetiva, a medida deve ser revista ou extinta. Do contrário, estamos transferindo a jurisdição ao império do desejo e não da razão.
6. A necessidade de critérios objetivos claros
Urge a criação de parâmetros objetivos claros que orientem a verificação da cessação do risco pelo magistrado(a). Isso poderia ser feito por meio de prazos determinados para revisão periódica das medidas, exigência de elementos mínimos que indiquem a persistência da ameaça e protocolos claros que evitem a perenização injustificada das restrições. Sem esses critérios, o instituto das medidas protetivas perde credibilidade, tornando-se vulnerável ao uso estratégico e abusivo.
7. O papel do juiz como filtro garantidor
O juiz não pode se limitar a replicar a percepção da vítima, mas deve atuar como guardião dos direitos fundamentais em conflito. Sua função é equilibrar a necessidade de proteção com a preservação das garantias da pessoa intimada. Isso exige que o magistrado vá além da mera retórica da “persistência do risco” e fundamente suas decisões em elementos concretos. Somente assim é possível evitar que medidas emergenciais se transformem em restrições indefinidas, sem base fática real.
8. Conclusão
A ausência de critérios objetivos sobre o que significa o fim da situação de risco nas medidas protetivas é um dos pontos mais sensíveis da lei Maria da Penha. A expressão “enquanto perdurar o risco” é vaga e abre espaço para a manutenção arbitrária de restrições, frequentemente atrelando sua vigência à vontade unilateral da suposta vítima. Para que as medidas cumpram sua finalidade legítima, é essencial estabelecer parâmetros claros, revisões periódicas e avaliação concreta da atualidade do risco. O juiz deve assumir papel ativo nesse filtro, assegurando proporcionalidade e evitando que medidas emergenciais se convertam em sanções permanentes. Assim, protege-se a mulher em situação real de violência sem sacrificar, de forma desarrazoada, os direitos fundamentais da pessoa intimada.