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Desistência recursal e função nomofilácica dos tribunais

O desafio contemporâneo: equilibrar a vontade das partes com a função pública dos tribunais na formação de precedentes.

21/10/2025

O sistema recursal brasileiro consagra o princípio da voluntariedade, segundo o qual a movimentação da jurisdição em segundo grau depende da iniciativa da parte vencida. Nesse contexto, a desistência do recurso representa a renúncia ao direito de ver reexaminada a decisão, configurando verdadeira retratação da vontade recursal.

A natureza jurídica desse ato está expressamente prevista no art. 998 do CPC de 2015, que dispõe: “O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso.” Trata-se, portanto, de ato processual unilateral, qual seja, a manifestação exclusiva de vontade da parte.

O direito de recorrer possui natureza potestativa, pois tem o poder de instaurar o procedimento recursal e seus efeitos jurídicos, como o direito à tutela jurisdicional em segundo grau. A desistência, por sua vez, é um ato dispositivo, expressão da autonomia da vontade de não prosseguir na busca pela reforma da decisão, produzindo efeitos apenas em relação ao desistente.

Importa distinguir a desistência do recurso da desistência da ação. Esta extingue o processo sem resolução do mérito (art. 485, VIII, CPC) e exige homologação judicial, bem como consentimento do réu após a contestação. 

Já a desistência recursal dispensa anuência do recorrido, justamente porque a vedação à reformatio in pejus retira-lhe qualquer interesse no prosseguimento do recurso, e independe, em regra, de homologação judicial.

Sua base normativa decorre da conjugação do art. 998 com o art. 200 do CPC/15, segundo o qual os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais de vontade, produzem efeitos imediatos. Assim, a desistência recursal opera de pleno direito, sem necessidade de decisão constitutiva.

A doutrina, contudo, ressalta que essa imediatidade não elimina o controle judicial. Cabe ao órgão julgador apenas verificar a regularidade e autenticidade da manifestação de vontade, certificando seus efeitos por meio de pronunciamento meramente declaratório.

Há, porém, limites à autonomia da parte. O parágrafo único do art. 998 prevê que a desistência do recurso não impede o julgamento de questão com repercussão geral reconhecida ou objeto de recursos repetitivos. Nesse caso, a Corte pode prosseguir no exame da tese jurídica em abstrato, preservando sua função nomofilácica e uniformizadora.

A interpretação do art. 998 do CPC pelos tribunais

A interpretação do art. 998 do CPC/15 vem passando por relevante processo de refinamento nos Tribunais Superiores, que buscam compatibilizar a autonomia da vontade das partes com a boa-fé processual e com a função nomofilácica do sistema de precedentes. 

A jurisprudência passou a empregar a boa-fé como critério de controle do exercício abusivo do direito de desistir, especialmente quando o ato revela intenção de frustrar a efetividade da tutela jurisdicional ou de manipular o sistema recursal.

A análise cronológica dos julgados demonstra a evolução da compreensão sobre os limites da desistência recursal e o papel do controle judicial nesse ato unilateral.

Caso: REsp 1.285.405/SP (rel. min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 2014) 

Neste julgado, o STJ examinou a situação na qual o recorrente principal desistiu de sua apelação logo após a concessão de tutela antecipada recursal em favor do recorrente adesivo. 

De acordo com o art. 997, § 2º, III, do CPC/15 (correspondente ao art. 500, III, do CPC/1973), a desistência do recurso principal implica, em regra, o não conhecimento do recurso adesivo.

O STJ, contudo, afastou a aplicação literal da norma. Entendeu que a desistência, naquele contexto, tinha intenção manifesta de frustrar a efetividade da decisão judicial que havia deferido a tutela em favor do recorrente adesivo. 

Por essa razão, o ato foi considerado incompatível com o princípio da boa-fé processual, servindo de exemplo de abuso do direito de recorrer.

O voto do relator enfatizou que, embora a desistência possa ser manifestada a qualquer tempo, os dispositivos que a preveem possuem função instrumental, devendo ser interpretados de forma teleológica, de modo a assegurar a efetividade da tutela jurisdicional. 

Assim, firmou-se o entendimento de que o direito de desistir, embora potestativo, não é absoluto, submete-se aos limites éticos e finalísticos do processo.

Caso: REsp 1.930.837/SP (rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 2021) 

Em 2021, o STJ enfrentou novamente a questão da desistência recursal, agora em contexto de recuperação judicial. 

O TJ/SP havia indeferido pedido de desistência de agravo de instrumento interposto por credores, sob o argumento de que o recurso envolvia questões de ordem pública e interesse coletivo, o que justificaria seu julgamento de ofício.

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator, reformou a decisão. 

No voto condutor, o relator afirmou que prosseguir no julgamento de um recurso do qual a parte expressamente desistiu seria criar uma “nova espécie de remessa necessária”, sem previsão legal e em descompasso com o princípio da voluntariedade recursal.

Destacou, ainda, que o mesmo Tribunal paulista havia homologado desistência idêntica formulada por outra parte credora no mesmo processo. Negar o mesmo direito às demais partes configuraria violação à isonomia e ao devido processo legal, princípios estruturantes do sistema processual.

O julgado reafirmou que, mesmo em hipóteses que envolvem interesse público mediato, como a recuperação judicial, o controle judicial da desistência limita-se à regularidade formal e à boa-fé da manifestação de vontade. A atuação ex officio do tribunal viola a soberania das partes sobre o impulso recursal.

Caso: REsp 2.172.296/RJ (rel. min. Nancy Andrighi, julgado em 2023) 

Em 2023, o STJ realizou uma nova inflexão interpretativa no REsp 2.172.296/RJ, em que a empresa Meta (WhatsApp) buscava desistir de recurso especial em ação de indenização por divulgação não consentida de imagens íntimas de menor. 

O caso envolvia a responsabilidade solidária da plataforma pela veiculação do conteúdo e possuía grande repercussão social.

A ministra Nancy Andrighi submeteu o pedido de desistência à questão de ordem, posteriormente apreciada pela 3ª turma, que decidiu indeferir a desistência. 

O Tribunal reconheceu a existência de indícios de uma espécie de “artimanha” processual, uma vez que a empresa já havia apresentado pedidos semelhantes de desistência em casos análogos, possivelmente com o intuito de evitar a formação de jurisprudência consolidada sobre a matéria.

Além disso, a Corte identificou forte interesse público na definição de uma orientação jurisprudencial quanto à proteção de menores em ambientes digitais e à responsabilidade civil das plataformas tecnológicas. 

Assim, prevaleceu a necessidade de afirmação da função nomofilácica do STJ, a de uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional, sobre a vontade individual da parte.

O caso representou a consolidação de um critério de ponderação, a autonomia da parte, embora regra, pode ceder diante da integridade institucional do sistema de precedentes e da tutela de valores de ordem pública.

A conclusão está em construção

Se antes prevalecia a leitura literal dos arts. 200 e 998 do CPC/15, hoje o debate desloca-se para um terreno mais complexo, em que a boa-fé processual, a finalidade do processo e a nomofilaquia funcionam como vetores de interpretação. 

A jurisprudência indica que o direito de desistir permanece, mas já não é absoluto. Contudo, a discussão ainda está em aberto. 

Diante desse cenário, surgem questões inevitáveis: até que ponto é possível exercer controle sobre o ato de desistência? Qual é o limite institucional dessa atuação? Qualquer tribunal pode fazê-lo, inclusive os tribunais de segundo grau, ou apenas os Tribunais Superiores, no âmbito do regime de precedentes e em matérias de repercussão coletiva?

A discussão não é apenas teórica. Em 2021, o TRT da 15ª Região apontou expressamente a existência de uma “estratégia de manipulação da jurisprudência” por parte da Uber, que teria oferecido acordos a motoristas prestes a obter decisões favoráveis, justamente para evitar a formação de precedentes sobre o vínculo empregatício. O tribunal, nesse caso, recusou a homologação da desistência e enfrentou o mérito, citando o abuso do direito processual e a incompatibilidade com o princípio da cooperação.

Esses episódios mostram que o problema transcende a literalidade do art. 998 do CPC. O desafio está em definir quem pode e quando deve exercer esse controle: se é legítimo que tribunais regionais impeçam desistências em nome da boa-fé e da integridade da jurisdição, ou se tal prerrogativa deve permanecer reservada aos tribunais superiores, quando em jogo estiver a coerência do sistema de precedentes.

O tema exige reflexão, qual é o ponto de equilíbrio entre a liberdade processual das partes e a função pública do processo? Talvez seja nesse espaço de tensão, entre autonomia e institucionalidade, que o direito processual encontre seu próximo campo de amadurecimento.

Manasses Lopes
Advogado e professor universitário. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília.

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