Um dos pontos mais importantes para compreender a justiça fiscal é a análise dos recortes sociais. Os recortes de renda, raça e gênero são fundamentais para entender como os tributos pressionam a renda, o patrimônio e o consumo em cada estrato social.
A tributação é um mecanismo de divisão da riqueza social. Ao se tributar aqueles com mais recursos e renda para financiar políticas públicas de acesso coletivo, viabiliza-se a redistribuição social da riqueza.
Na vida comunitária, a justiça distributiva é essencial para o progresso coletivo e um meio de estabilização das discrepâncias e injustiças mais agudas, mesmo em uma sociedade capitalista. Contudo, a função da economia - como meio de produção, circulação e distribuição da riqueza - tem se afastado cada vez mais de seu papel social. A apropriação privada da riqueza social, expressa na mais-valia improdutiva, não gera bens, oportunidades ou trabalho, sendo uma das principais deformações do capitalismo contemporâneo.
As externalidades da economia tornam-se ainda mais visíveis quando se separam os grupos sociais em categorias e se analisa como cada grupo é pressionado pela carga tributária.
O sistema tributário brasileiro sempre foi profundamente regressivo, e muitas pessoas não compreendem como se dá essa regressividade. A análise parece complexa, mas não é: basta observar a renda e a proporção que cada faixa destina ao recolhimento de tributos.
Como a base de tributação recai sobre o consumo, e em proporção muito menor sobre patrimônio e renda, entende-se por que se afirma que a tributação pesa mais sobre mulheres, homens negros e pessoas racializadas, especialmente sobre as mulheres negras.
Os relatórios do IBGE, com base no último Censo Demográfico, confirmam essa informação: além de apresentarem salários mais baixos, as mulheres negras são também mais suscetíveis à informalidade.
Quanto mais uma família gasta em itens de sobrevivência, como alimentos e serviços, menores são as condições de acúmulo de patrimônio e renda.
Assim, o crivo para analisarmos se a reforma tributária sobre o consumo promove ou não justiça fiscal deve observar os seguintes pontos:
A renda dos mulheres são em sua maior parte usadas para alimentação, cuidados pessoais, criação de filhos e itens domésticos.
1. Desoneração da cesta básica
A primeira e mais importante medida do governo foi a desoneração da cesta básica do pagamento do IBS e da CBS, prevista na LC 214/25:
Art. 125. Ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre as vendas de produtos destinados à alimentação humana relacionados no Anexo I desta LC, com a especificação das respectivas classificações da NCM/SH, que compõem a Cesta Básica Nacional de Alimentos, criada nos termos do art. 8º da EC 132, de 20 de dezembro de 2023.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 126 desta LC às reduções de alíquotas de que trata o caput deste artigo.
Outros bens tiveram desoneração menor, como os serviços de educação e saúde, além de diversos produtos com redução de 60%.
A cadeia produtiva do setor de alimentos também recebeu atenção, permitindo ao produtor rural não recolher IBS/CBS. Contudo, a previsão de redução de 60% para fertilizantes e agrotóxicos pode ser uma das primeiras medidas julgadas no STF.
2. Cashback
O cashback é a devolução dos tributos sobre o consumo pagos pelas pessoas de menor renda. Conforme a LC 214/25:
Art. 113. O destinatário das devoluções previstas neste Capítulo será aquele responsável por unidade familiar de baixa renda cadastrada no CadÚnico - Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, conforme o art. 6º-F da lei 8.742/1993 (lei orgânica da assistência social), e que observar, cumulativamente: I - possuir renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo nacional;
II - ser residente no território nacional; e
III - possuir inscrição regular no CPF.
Embora seja uma iniciativa relevante, o cashback é tímido em seus propósitos redistributivos, já que a devolução ocorre em valores baixos e depende de inscrição ativa no CadÚnico.
3. Os MEIs
Os MEIs - Microempreendedores Individuais não recolhem IBS/CBS, mas também não geram créditos tributários para sua inclusão na cadeia produtiva.
O modelo de não cumulatividade plena exclui o Simples Nacional (EPP e ME optantes), os microempreendedores e os nanoempreendedores da tributação regular. Isso significa que esses grupos nem ganham, nem repassam créditos de IBS/CBS, conforme o art. 41, §9º, da LC 214/25:
I - não será permitida a apropriação de créditos do IBS e da CBS pelo optante do Simples Nacional.
Um estudo de 2024 da plataforma MaisMEI, intitulado O Corre do MEI em 2024, revelou o perfil da empreendedora brasileira, destacando a predominância de mulheres negras entre 35 e 44 anos como microempreendedoras individuais.
O Sebrae (2023) também constatou que as mulheres negras são donas de negócios menores e mais vulneráveis, atuando, em geral, sem empregados formais.
Sem a possibilidade de adquirir e transferir créditos - mesmo que fossem presumidos, como ocorre com transportadores autônomos, coletores incentivados ou agricultores -, não há estímulo para incluir esses trabalhadores nas cadeias de fornecedores e prestadores de serviços.
Assim, a categoria mais prejudicada será composta por mulheres negras com pequenos negócios, que continuarão à margem da economia formal.
4. Avaliação quinquenal
Outro ponto relevante seria a inclusão de representantes das categorias sociais mais penalizadas na avaliação quinquenal prevista no art. 475 da LC 214/25.
A escuta de pessoas negras e mulheres afetadas pela tributação seria fundamental para representar os interesses específicos dos estratos sociais com recortes interseccionais. A reivindicação do lugar de fala é medida urgente.
5. Itens de higiene e saúde menstrual
A principal norma sobre o tema é a lei 14.214/21, que instituiu o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, regulamentado pelo decreto 11.432/23.
O projeto, proposto por Marília Arraes, então deputada federal por Pernambuco, só foi efetivamente incorporado à LC 214/25 cinco anos depois.
Art. 147. Ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre o fornecimento dos seguintes produtos de cuidados básicos à saúde menstrual: I - tampões higiênicos;
II - absorventes higiênicos internos ou externos, descartáveis ou reutilizáveis, e calcinhas absorventes;
III - coletores menstruais.
A redução de alíquotas prevista aplica-se apenas aos produtos que atendam aos requisitos definidos pela Anvisa.
Conclusão
O feminismo crítico exige que as categorias de gênero e raça sejam analisadas à luz dos efeitos da tributação.
Embora a sistemática de não cumulatividade tenha sido amplamente aplaudida como avanço técnico, seus efeitos reais sobre as desigualdades de classe, gênero e raça não foram devidamente debatidos.
Uma reforma tributária justa precisa incorporar o olhar interseccional, pois a neutralidade tributária é, em si, uma forma de invisibilizar as desigualdades estruturais que persistem na sociedade brasileira.
Síntese dos principais pontos debatidos:
- A regressividade do sistema tributário brasileiro afeta de forma desproporcional mulheres negras e pessoas racializadas.
- A desoneração da cesta básica é positiva, mas limitada diante das desigualdades estruturais.
- O cashback tem alcance restrito e impacto redistributivo modesto.
- A exclusão dos MEIs e nanoempreendedores da cadeia de créditos agrava as desigualdades de gênero e raça.
- A avaliação quinquenal deveria incluir representação social interseccional.
- A tributação sobre produtos de saúde menstrual representa um avanço, ainda que tardio e limitado.
- A justiça fiscal depende de um projeto de tributação solidária e antirracista, capaz de reduzir desigualdades históricas e estruturais.
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Referências
BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 2023.
BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 30 de junho de 2025. Dispõe sobre o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º jul. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 dez. 1993.
BRASIL. Lei nº 14.214, de 6 de outubro de 2021. Institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 out. 2021.
BRASIL. Decreto nº 11.432, de 8 de março de 2023. Regulamenta o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 mar. 2023.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2022: resultados gerais da amostra. Rio de Janeiro, 2023.
MAISMEI. O Corre do MEI em 2024. São Paulo: Plataforma MaisMEI, 2024.
SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS (SEBRAE). Empreendedorismo feminino e raça no Brasil. Brasília, DF, 2023.