Vivemos, inegavelmente, um tempo de profunda reflexão sobre os pilares que sustentam nossa sociedade. O debate acerca da descriminalização do aborto no Brasil, reacendido por recentes movimentos no STF, especialmente no contexto da ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, nos confronta com questões que transcendem o mero arcabouço jurídico. A decisão do ministro Flávio Dino de retirar o processo de pauta, após os votos favoráveis à descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação dos ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, não é apenas um fato processual; é um convite urgente a uma ponderação mais aprofundada sobre a proteção da vida humana em seus primórdios e os fundamentos legais que a resguardam.
Este não é um debate técnico-jurídico asséptico, mas uma discussão vital sobre a essência de nossa nação e os valores que desejamos legar às futuras gerações. A defesa da vida humana em seu estágio mais vulnerável não é apenas uma questão de princípio, mas um teste decisivo para nossa capacidade de edificar uma sociedade verdadeiramente justa, compassiva e inclusiva.
A ADPF 442 e os votos dos ministros: Onde o Direito encontra a vida e a controvérsia
A ADPF 442, iniciativa do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade em 2017, põe em xeque a constitucionalidade dos arts. 124 e 126 do CP, que tipificam o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento. É preciso reconhecer a validade das preocupações daqueles que advogam pela descriminalização: seus argumentos, centrados na autonomia da mulher, na saúde pública e nas disparidades sociais, ecoam angústias legítimas e sofrimentos reais que demandam nossa atenção e soluções concretas.
O ministro Barroso, em seu voto, defendeu a tese de que a interrupção da gestação deveria ser encarada como uma questão de saúde pública, e não de direito penal, enfatizando o impacto desproporcional da criminalização sobre mulheres em situação de vulnerabilidade social, especialmente as mais pobres e negras. A ministra Rosa Weber, em manifestação anterior, chegou a classificar a criminalização como uma forma de violência institucional contra as mulheres. Tais perspectivas, sem dúvida, apontam para desafios sociais prementes que nossa sociedade precisa enfrentar com seriedade e empatia.
Contudo, ao analisar essas posições com a profundidade que o tema exige, deparamo-nos com uma lacuna fundamental: a insuficiente consideração do direito à vida do nascituro. Nossa Carta Magna de 1988, em seu art. 5º, caput, é categórica ao estabelecer a inviolabilidade do direito à vida, sem qualquer ressalva quanto ao estágio de desenvolvimento do ser humano. Este não é um detalhe menor, mas o próprio alicerce sobre o qual se ergue nossa concepção de justiça e a proteção dos mais indefesos. Ignorar essa premissa é comprometer a própria essência de um Estado Democrático de Direito que se pretende protetor de todos os seus cidadãos.
O Direito à vida: Mais que palavras na lei, uma realidade a ser protegida
Quando nos debruçamos sobre o direito à vida desde a concepção, não estamos meramente recitando artigos de lei; estamos, na verdade, tocando em uma das mais profundas e essenciais verdades da existência humana. A compreensão de que a vida merece proteção desde o seu alvorecer não brota apenas de convicções morais ou religiosas, mas se alicerça em um robusto fundamento jurídico que reflete o amadurecimento de nossa civilização.
O CC brasileiro, em seu art. 2º, embora condicione a aquisição plena da personalidade jurídica ao nascimento com vida, faz uma ressalva crucial: os direitos do nascituro estão assegurados desde a concepção. Esta disposição legal vai muito além de uma mera formalidade; ela traduz o reconhecimento de que, no momento da concepção, surge um ser único e valioso, merecedor de nossa proteção incondicional. A corrente concepcionista, amplamente adotada pela doutrina jurídica, enxerga o nascituro como um ser humano em desenvolvimento, portador de direitos inatos desde o instante de sua concepção, mesmo que a plena efetivação de certos direitos, como os patrimoniais, dependa do nascimento com vida.
Nosso compromisso com a proteção da vida é ainda mais reforçado por instrumentos internacionais. O Brasil, como signatário do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), assume a obrigação de respeitar e proteger a vida de toda pessoa, e, "em geral, desde o momento da concepção" (Art. 4º, §1º). Este tratado, que possui status supralegal em nosso ordenamento jurídico, não apenas baliza nossa legislação interna, mas também espelha um consenso global sobre a imperatividade de salvaguardar a vida em todas as suas fases, desde o seu mais tenro início.
Repensando os argumentos da descriminalização: Entre a compaixão e a verdade inegável
É imperativo que abordemos os argumentos em favor da descriminalização do aborto com a seriedade e a compaixão que eles merecem, pois, muitas vezes, refletem sofrimentos reais e preocupações legítimas. Quando se defende que a interrupção da gestação é uma questão de saúde pública e não de direito penal, percebe-se uma genuína preocupação com o bem-estar das mulheres. Contudo, essa perspectiva, por mais bem-intencionada que seja, esbarra em um dilema ético e jurídico incontornável: a saúde pública, por mais relevante que seja, não pode jamais ser edificada sobre a negação do direito fundamental à vida de um outro ser humano.
A criminalização do aborto não tem como objetivo punir a mulher por sua vulnerabilidade social - uma interpretação que distorce por completo o propósito da lei. Seu verdadeiro escopo é a proteção daqueles que não possuem voz para se defender: os nascituros. Uma sociedade que falha em proteger seus membros mais vulneráveis e indefesos está, em essência, abdicando de um princípio basilar de justiça e humanidade.
O argumento de que a criminalização penaliza desproporcionalmente mulheres pobres, embora contenha uma observação pertinente sobre as desigualdades sociais, propõe uma solução profundamente problemática. A verdadeira resposta para a pobreza e a carência de acesso à saúde não pode ser a supressão de vidas humanas. Como sociedade, temos o dever moral e a capacidade de conceber e implementar soluções que amparem tanto as mães quanto os filhos. Isso inclui políticas públicas robustas de apoio à gestação, acesso universal à educação sexual e a métodos contraceptivos eficazes, além de programas de suporte socioeconômico que garantam um ambiente digno para todas as famílias.
A afirmação de que países desenvolvidos e democráticos não criminalizam o aborto merece uma análise mais matizada. Muitos países, de fato, mantêm legislações restritivas ou permitem o aborto apenas sob condições estritas e prazos limitados. Mais importante ainda: a proteção da vida não deveria ser ditada por tendências internacionais, mas sim por princípios éticos universais e inalienáveis.
Autonomia e responsabilidade: A busca por um equilíbrio essencial
A questão da autonomia feminina demanda uma reflexão cuidadosa e respeitosa. É inegável que as mulheres devem possuir controle sobre suas vidas e seus corpos; este é um pilar fundamental dos direitos humanos. No entanto, ao considerarmos a gravidez, deparamo-nos com uma situação singular na experiência humana: a presença de outro ser humano em desenvolvimento.
A autonomia, por mais valiosa que seja, não pode ser absoluta a ponto de anular o direito à vida de outro ser humano. Nossa liberdade individual encontra seus limites éticos e legais precisamente onde se cruza com os direitos fundamentais de terceiros. No contexto da gravidez, estamos diante de dois seres humanos, ambos com direitos que devem ser cuidadosamente ponderados e equilibrados, e não de um dilema que justifique a eliminação de um em benefício do outro.
Reconhecemos que este equilíbrio não é simples, e as complexidades emocionais, físicas e sociais que uma gestação pode acarretar são imensas. Contudo, a solução para tais desafios deve ser encontrada através do apoio, do cuidado e da proteção de ambas as vidas envolvidas, jamais por meio da supressão de uma delas.
Uma reflexão sobre nosso futuro como sociedade: A escolha que nos define
A tentativa de descriminalizar o aborto até a 12ª semana no STF nos coloca diante de uma escolha fundamental sobre a sociedade que almejamos ser. Seremos uma nação que protege incondicionalmente a vida humana em todas as suas etapas, ou uma que permite exceções baseadas na conveniência ou nas dificuldades do momento?
Os votos dos ministros Barroso e Weber, embora pautados por preocupações sociais compreensíveis, representam uma visão que, ao priorizar considerações práticas, acaba por relativizar o direito fundamental à vida. Esta abordagem, ainda que busque mitigar sofrimentos reais, estabelece um precedente perigoso: a ideia de que alguns direitos humanos basilares podem ser flexibilizados quando se tornam inconvenientes.
A vida humana, em sua essência mais profunda, é o primeiro e mais sagrado de todos os direitos. Sem este direito fundamental, todos os demais perdem seu sentido e relevância. A proteção da vida não pode ser condicional, temporária ou sujeita às conveniências do momento; ela deve ser absoluta, especialmente quando se trata dos mais vulneráveis e indefesos.
Um apelo à consciência e à responsabilidade do STF
É imperativo que o STF aborde esta questão não apenas como um problema jurídico-técnico, mas como um momento definidor dos valores fundamentais que moldarão o Brasil nas próximas décadas. A Corte detém a responsabilidade histórica de reafirmar o compromisso incondicional do Estado brasileiro com a proteção da vida em todas as suas manifestações.
A sociedade brasileira, em sua rica e complexa diversidade, compartilha valores essenciais que incluem o respeito pela vida e a proteção dos vulneráveis. Pesquisas de opinião consistentemente demonstram que a maioria dos brasileiros defende o direito à vida desde a concepção. O Poder Judiciário, portanto, deve atuar como guardião desses valores compartilhados, e não como agente de sua desconstrução.
Precisamos ser uma sociedade capaz de enfrentar os desafios da pobreza, da desigualdade e da carência de acesso à saúde com criatividade, generosidade e inabalável determinação, mas sempre com a vida como valor supremo. Podemos e devemos construir um país onde nenhuma mulher se sinta desamparada durante a gravidez, onde todo nascituro seja acolhido, e onde as dificuldades socioeconômicas sejam superadas por meio do apoio mútuo e de políticas públicas adequadas.
Conclusão: A escolha que define quem somos
Ao final desta profunda reflexão, permanecemos diante de uma escolha que transcende as meras questões técnicas jurídicas e toca a própria alma da nossa identidade como nação. A inviolabilidade da vida desde a concepção não é apenas um princípio legal; é uma declaração sobre quem somos e o legado que desejamos edificar para as futuras gerações.
A descriminalização do aborto representa mais do que uma alteração na legislação penal; ela simboliza uma transformação fundamental em nossa compreensão sobre o valor intrínseco da vida humana. Quando uma sociedade se omite na proteção de seus membros mais vulneráveis e indefesos, ela inicia um processo de erosão moral que pode acarretar consequências imprevisíveis e duradouras para o seu futuro.
Por isso, fazemos um veemente apelo para que o STF exerça sua função constitucional de guardião dos direitos fundamentais, reafirmando que o direito à vida é inviolável, incondicional e universal. Que nossa Corte Suprema seja lembrada pela história não como aquela que relativizou o direito à vida, mas como aquela que o protegeu com bravura e sabedoria quando ele estava sob ameaça.
A vida é preciosa demais para ser objeto de concessões políticas ou conveniências sociais. Ela merece nossa proteção absoluta, nosso cuidado incondicional e nossa defesa apaixonada. Este é o compromisso inadiável que devemos às gerações presentes e futuras, e é a escolha que nos definirá como uma sociedade justa, compassiva e verdadeiramente humana.
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Referências
O último ato de Barroso: entenda o julgamento sobre aborto, pausado após voto do ministro agora oficialmente fora do STF. O Globo, 18 out. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2025/10/18/o-ultimo-ato-de-barroso-entenda-o-julgamento-sobre-aborto-pausado-apos-voto-do-ministro-agora-oficialmente-fora-do-stf.ghtml
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
A proteção jurídica do nascituro à partir da visão do STF. Migalhas, 06 set. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/414660/a-protecao-juridica-do-nascituro-a-partir-da-visao-do-stf
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm