A Constituição Federal de 1988, que neste dia 5 de outubro completou 37 anos de existência, é o documento símbolo da transição da ditadura cívico-militar para a democracia, inaugurando o período que nossos historiadores denominam como Nova República.
Como ocorrido em outros períodos da nossa história, essa mudança de regime ocorreu sem grande ruptura e contando com participação - e até mesmo protagonismo - de agentes do regime que então se encerrava.
No âmbito do STF, que recebeu a missão de ser o guardião da Constituição, os constituintes optaram por manter, em sua totalidade, a composição herdada do regime autoritário.
Em discurso ocorrido na cerimônia de instalação da Assembleia Nacional Constituinte, o ministro Moreira Alves, então presidente do STF, nomeou o golpe de 64 como revolução e afirmou que “ao instalar-se esta Assembleia Nacional Constituinte, chega-se ao termo final do período de transição com que, sem ruptura constitucional, e por via de conciliação, se encerra ciclo revolucionário”1.
Portanto, nesta primeira fase pós promulgação da Constituição, a carta política foi interpretada por um STF que, em virtude de sua composição herdada do regime autoritário, “não nutriam grande entusiasmo pelas potencialidades da Constituição”, conforme destacado pelo ministro Luís Roberto Barroso em recente entrevista ao programa Roda Viva2.
Neste período a Corte tinha uma postura conservadora em utilizar-se dos instrumentos jurídicos para dar efetividade a normas constitucionais não regulamentadas por legislação ou mesmo não implementadas pelo poder público, além de uma significativa maior deferência aos demais poderes da República.
Na virada para o século XXI, com nomeação de novos ministros e significativa alteração da composição, além claro, de uma conjuntura política e social diversa, inicia-se um processo de aumento de protagonismo do STF.
Com essa virada, alguns dos instrumentos criados pelos constituintes - como a Arguição de Preceitos Fundamentais - ganham relevância, assim como surgem os processos estruturais, a técnica de julgamento com declaração do “estado de coisas inconstitucionais”, o que coloca o STF com nível de protagonismo ainda não experimentado.
Este ganho de protagonismo reverberou nos demais poderes tensionando e redesenhando nossa separação de poderes. Na seara do legislativo, a declaração de inconstitucionalidade de dispositivo do marco civil da internet após ausência de regulamentação das plataformas digitais pelo Congresso Nacional, a equiparação de ofensas discriminatórias à população LGTQIA+ ao crime de racismo, a permissão do casamento homoafetivo, entre outras, são mostras da Corte Constitucional atuando na esfera legiferante.
Do mesmo modo, este protagonismo também envolveu o poder Executivo, como podemos observar na fixação de tese dos Temas 698 (Limites do Judiciário para determinar obrigação de fazer do Estado), 548 (dever estatal de assegurar o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a 5 anos de idade), além das ADPFs 635 e 347, que tratam das operações policiais nas favelas e do sistema carcerário, para ficarmos em alguns exemplos.
Todas essas decisões ocorreram em um ambiente de relativa normalidade institucional, sofrendo críticas de variados setores da sociedade, mas sem grandes crises ou esgarçamento do diálogo institucional.
O aumento do tensionamento ou esgarçamento das relações com os demais poderes intensifica-se após duas situações. A primeira quando o Tribunal, em cenário de um Governo Federal de minoria no legislativo, opta por enfrentar a constitucionalidade da operacionalização e ausência de transparência das emendas parlamentares, que no orçamento de 2025 representou mais de R$ 58 bilhões.
Já o segundo fato consiste no julgamento da denominada trama golpista com previsão de conclusão ainda em 2025, onde pela primeira vez em nossa história generais de alta patente e lideranças políticas de grande popularidade foram condenados, entre outros, pelos crimes de Golpe de Estado e Abolição violenta do Estado Democrático de Direito, precedido de uma atuação firme e corajosa do TSE na condução das eleições de 2022, talvez a mais tensa de nossa história.
Essa postura do STF, onde muito mais acertou do que errou, cobrou um preço. Tentativas recorrentes de impeachment de seus Ministros, propostas de Emendas Constitucionais com diminuição de poderes e atribuições, perda de apoio e confiança popular, são preocupações que atualmente compõe a agenda do Tribunal.
Quis o destino que o ministro Edson Fachin, jurista de postura discreta e de respeitável carreira acadêmica, fosse o responsável por conduzir o Tribunal nesta travessia. Ao analisarmos pelo discurso de posse na presidência, em cerimônia sem festividades e coquetéis, mas com forte representatividade política dentre os participantes, denota-se que o STF vai buscar navegar em mares mais tranquilos sem, contudo, perder protagonismo.
Em um discurso que se comprometeu com a austeridade financeira, o que sinaliza alguma discussão no âmbito do CNJ aos supersalários da magistratura, Fachin defendeu, em uma fala já pronunciada em outra oportunidade, que “nosso compromisso é com a Constituição. Repito: ao Direito, o que é do Direito. À política, o que é da política”.
Prosseguindo, sustentou que “realçando a colegialidade, aqui venho a fim de fomentar estabilidade institucional. O país precisa de previsibilidade nas relações jurídicas e confiança entre os Poderes. O Tribunal tem o dever de garantir a ordem constitucional com equilíbrio”.
No decorrer destes 10 anos de Tribunal, salvo raras exceções, o ministro Fachin teve uma atuação de poucas entrevistas, salvo quando ocupando espaço de representação - como, por exemplo, quanto esteve presidindo o STF -, além de raro diálogo ou relação próxima com atores políticos.
Tomando como parâmetro seu decênio como ministro e seu discurso de posse, que representa um plano de gestão para a sua presidência, denota-se que Fachin planeja - a ver se conseguirá - uma gestão de menos conflito com os demais poderes, todavia sem nenhum indício que fará o Tribunal perder o seu protagonismo. Fachin, ao seu jeito, parece compreender que nossa atual e resistente democracia precisa de um STF discreto, porém forte.
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1 Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/224180/000862703.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
2 Disponível em https://x.com/rodaviva/status/1970306046582206493?s=48&t=v2THiNL8WnD-XNv3xYewwg.