Migalhas de Peso

STF: Toffoli preserva garantias e valida a busca e apreensão extrajudicial via RTD

A constitucionalidade da busca e apreensão via RTD. O foro extrajudicial, regulado pelo CNJ e fiscalizado pelo Judiciário, oferece a segurança e eficiência que o marco das garantias almeja.

22/10/2025

O recente voto do ministro Dias Toffoli no STF ao se posicionar pela inconstitucionalidade da busca e apreensão extrajudicial de veículos via DETRANs - Departamentos Estaduais de Trânsito (ADIn 7.600 e apensadas) (BRASIL, 2025), gerou interpretações apressadas e críticas que merecem um contraponto técnico.

Argumenta-se que a decisão, ao invés de representar um retrocesso para o sistema de crédito, como alegado por alguns, na verdade reforça a segurança jurídica ao distinguir corretamente as esferas extrajudiciais de atuação e validar a via constitucionalmente adequada para a execução extrajudicial: o RTD - Registro de Títulos e Documentos.

A precisão cirúrgica do voto

A análise atenta do voto do ministro Toffoli revela que sua objeção não foi à extrajudicialização per se, mas à atribuição de poderes de execução forçada a um órgão administrativo stricto sensu, sem as devidas garantias processuais e sem a expertise jurídica necessária. O ministro fundamenta sua posição na violação da reserva de jurisdição para atos de coerção direta sobre o patrimônio e a posse, na afronta ao devido processo legal pela ausência de um procedimento robusto e imparcial no âmbito do DETRAN (BRASIL, 2025). Mas direciona sua crítica especificamente ao art. 8º-E do decreto-lei 911/69 (BRASIL, 2023a), que facultava a execução via DETRAN.

Ele argumenta que os DETRANs, como órgãos executivos de trânsito com atribuições estritamente administrativas (Art. 22, lei 9.503/97), não possuem a estrutura, a expertise jurídica e, crucialmente, a fiscalização pelo Poder Judiciário necessárias para conduzir um procedimento expropriatório com as devidas garantias ao devedor (BRASIL, 2025).

Crucialmente, o ministro distingue expressamente a situação dos DETRANs daquela dos cartórios extrajudiciais. Ele reconhece que os procedimentos perante o RTD, instituídos pelos arts. 8º-B e 8º-C do decreto-lei 911/69 (com a redação da lei 14.711/23) (BRASIL, 2023a; BRASIL, 2023b), estão sujeitos à regulamentação e fiscalização do Poder Judiciário, via CNJ, o que lhes confere um status jurídico diferenciado (BRASIL, 2025, p. 8).

Toffoli chega a citar e transcrever trechos do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (provimento 149/23, atualizado pelo provimento 196/25) (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2023; CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2025), que padroniza os procedimentos no RTD, destacando as "cautelas destinadas a evitar abusos por parte dos credores, assegurar os direitos dos devedores e garantir a transparência e a rastreabilidade das operações para uma fiscalização eficiente" (BRASIL, 2025, p. 8).

A crítica do ministro se concentra, portanto, na cisão criada pelo art. 8º-E, que facultava via DETRAN, um "sistema paralelo (...) o qual, diversamente do que ocorre nas execuções havidas perante os cartórios, não se sujeita à regulamentação e à fiscalização pelo Poder Judiciário" (BRASIL, 2025). Ele ressalta ainda a inadequação da resolução CONTRAN 1.018/25, que regulamentava a via DETRAN, por não assegurar a análise da defesa do devedor por autoridade pública imparcial, concentrando todo o poder decisório no próprio credor (BRASIL, 2025, p. 12-14).

A via RTD: Segurança jurídica e eficiência sob a égide do CNJ e fiscalização judicial

Ao contrário do cenário descrito para os DETRANs, a execução extrajudicial via RTD, conforme regulamentada pelo CNJ (provimento 196/25), oferece um arcabouço robusto de garantias:

  1. Função pública delegada: O registrador de títulos e documentos atua por delegação do Poder Público (Art. 236, CF) (BRASIL, 1988), submetido a um regime jurídico estrito (lei 8.935/94) (BRASIL, 1994) e à fiscalização permanente do Judiciário.
  2. Procedimento detalhado e uniforme: O provimento 196/25 estabelece um rito claro e nacionalmente unificado, via plataforma eletrônica (Central RTDPJ Brasil), para a notificação (Art. 397-V), a impugnação pelo devedor (Arts. 397-X a 397-AE), a consolidação da propriedade (Art. 397-C, I) e a busca e apreensão (Arts. 397-AH, 397-AI).
  3. Análise imparcial da impugnação: Diferentemente da via DETRAN, no RTD, o Oficial analisa a impugnação do devedor (limitada a questões de pagamento e cálculo, conforme Art. 397-X), podendo indeferi-la ou acolhê-la, esgotando a instância administrativa (Art. 397-AE), o que garante um primeiro nível de controle por autoridade imparcial.
  4. Busca e apreensão não coercitiva e documentada: O provimento é claro ao definir que a diligência de apreensão pelo oficial do RTD não se caracteriza como ato coercitivo (Art. 397-AI, § 5º). Ela ocorre em locais públicos ou com acesso autorizado, sendo documentada por auto circunstanciado, fotos e, preferencialmente, filmagem (Art. 397-AI, §§ 3º, 5º e 6º). Havendo recusa na entrega, lavra-se certidão, e o credor deve buscar a via judicial (Art. 397-K, § 4º). Isso respeita a reserva de jurisdição para atos de força.
  5. Controle judicial: Todo o procedimento está sujeito a controle judicial a posteriori, e eventuais ilegalidades podem ser questionadas na via jurisdicional (Art. 397-H). A própria existência do procedimento de dúvida registral (Art. 198, lei 6.015/73) (BRASIL, 1973) demonstra a submissão procedimental recursal ao Judiciário.
  6. Notificação e prazo para purgação/impugnação: O devedor é notificado (preferencialmente por via eletrônica) para, em 20 dias, pagar a dívida ou apresentar impugnação (Art. 397-V).
  7. Direito à reversão pós-apreensão: Mesmo após a apreensão, o devedor tem 5 dias para pagar a dívida integral e reverter a consolidação (Art. 397-AK).

Refutando as críticas: A via RTD fortalece, não abala, o crédito

Diante da robustez do procedimento via RTD, as críticas de que o voto do ministro Toffoli prejudicaria o crédito e a segurança das operações perdem o sentido:

Conclusão: Reconhecendo a jurisdição extrajudicial qualificada

O voto do ministro Dias Toffoli não representa um ataque à desjudicialização, ou extrajudicialização, como preferimos chamar, mas um chamado à sua realização dentro dos limites constitucionais. Ao declarar a inconstitucionalidade da execução via DETRAN, o ministro protege garantias fundamentais. Ao ressalvar e detalhar os procedimentos via RTD, regulamentados pelo CNJ e fiscalizados pelo Judiciário, ele aponta o caminho correto: a jurisdição extrajudicial qualificada, exercida pelos delegatários do foro extrajudicial.

As críticas que não fazem essa distinção essencial fragilizam o debate, gerando um alarmismo infundado e despido de informações essenciais ao debate. A verdade é que o marco legal das garantias, na parte que atribui a execução ao RTD, permanece hígido e funcional. Cabe agora aos operadores do Direito e aos agentes financeiros utilizarem essa via, constitucionalmente segura e normativamente detalhada, para garantir a eficiência na recuperação do crédito sem sacrificar os direitos fundamentais do cidadão.

____________________

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Acesso em: 17 out. 2025.

BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1973. Acesso em: 17 out. 2025.

BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1994. Acesso em: 17 out. 2025.

BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantia [...]; altera o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969 [...]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 out. 2023. Acesso em: 17 out. 2025. (BRASIL, 2023b)

BRASIL. Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969. Altera a redação do art. 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo sobre alienação fiduciária e dá outras providências. Compilado com alterações da Lei nº 14.711/2023. Acesso em: 17 out. 2025. (BRASIL, 2023a)

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.600 (e apensadas). Voto do Ministro Dias Toffoli nos Embargos de Declaração. Julgamento em andamento. Brasília: STF, 2025.

CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária: Negócio Fiduciário. 8. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento nº 149, de 30 de agosto de 2023. Institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), que regulamenta os serviços notariais e de registro. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, DF. Acesso em: 17 out. 2025. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2023)

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento nº 196, de 04 de junho de 2025. Altera o Provimento nº 149/2023 para incluir a regulamentação da alienação fiduciária em garantia sobre bens móveis. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2025)

LESSA DA SILVA, Marcelo. Extrajudicialização: um novo e eficiente acesso à justiça multiportas. Migalhas, São Paulo, 29 ago. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/438855/extrajudicializacao-um-novo-e-eficiente-acesso-a-justica-multiportas. Acesso em: 4 set. 2025.

LESSA DA SILVA, Marcelo. O direito humano e fundamental de acesso à justiça. Migalhas, São Paulo, 28 ago. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/438563/o-direito-humano-e-fundamental-de-acesso-a-justica. Acesso em: 4 set. 2025.

LESSA DA SILVA, Marcelo. A eficiência extrajudicial como solução para o Estado e o cidadão. Migalhas, São Paulo, 4 set. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/439244/a-eficiencia-extrajudicial-como-solucao-para-o-estado-e-o-cidadao. Acesso em: 5 set. 2025.

SILVA, Marcelo Lessa da.Justiça Multiportas, Serventias Extrajudiciais e a integração de Foros: por uma Nova Governança Pública no Poder Judiciário brasileiro. São Paulo: Editora Dialética, 2024. Tese (Doutorado em Direito Constitucional e Teoria Política) – Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2023.

Marcelo Lessa da Silva
Pós-Doutor em Direito (UniSalento/ITA); Doutor em Direito e Teoria Política (UNIFOR); Mestre em Direito (UCP); Mestre em Gestão Pública (UNESA); Professor, Tabelião e Diretor de Estudos do IEPTB/RO

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

A força da jurisprudência na Justiça Eleitoral

3/12/2025

Edição gênica e agronegócio: Desafios para patenteabilidade

3/12/2025

Abertura de empresas e a assinatura do contador: Blindagem ou burocracia?

3/12/2025

Como tornar o ambiente digital mais seguro para crianças?

3/12/2025

Recuperações judiciais em alta em 2025: Quando o mercado nos lembra que agir cedo é um ato de sabedoria

3/12/2025